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O que significa a viagem de Kissinger à China?

A China tem recebido altos cargos do Governo dos Estados Unidos, mas não só, sendo Henry Kissinger o último exemplo. A receção de alto nível a grandes empresários e antigos políticos mostram a intenção de Pequim em criar canais alternativos de comunicação com os EUA

O antigo secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, foi a Pequim numa viagem não sancionada pelo Governo dos Estados Unidos. Na China, teve reuniões do mais alto nível, começando com o Presidente chinês, Xi Jinping, o diretor do Comité Central do Partido Comunista Chinês para as Relações Exteriores, Wang Yi, e o ministro da Defesa, Li Shangfu. Este último que, por sinal, recusou uma reunião com o homólogo americano, Lloyd Austin, em junho.

A retoma das relações entre a China e os Estados Unidos é muito recente. Na verdade, a viagem de Anthony Blinken a Pequim, a 18 de junho, foi a primeira visita oficial do Governo de Biden à China, três anos depois de ter assumido a presidência do país. Pouco depois, foi a vez da secretária do Tesouro, Janet Yellen, fazer a mesma viagem, para se reunir com a sua contraparte chinesa, a 6 de julho. A verdade é que a receção não foi calorosa, com o Governo chinês a vincar que falta muito para normalizar as relações.

O mesmo não se pode dizer da forma como Henry Kissinger foi recebido. Ele que não é sequer parte integrante da Administração de Biden, reuniu-se com os mais altos cargos da China, algo que os próprios Estados Unidos estão a ter dificuldades. “É lamentável que um cidadão privado possa encontrar-se com o ministro da Defesa e os Estados Unidos não”, disse o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, que também confirmou que o Governo de Biden sabia em antemão da viagem e espera ouvir o que Kissinger tem para dizer.

Refira-se que, Kissinger foi o secretário de Estado do Presidente Richard Nixon. Há 52 anos, em julho de 1971, foi a Pequim numa viagem secreta no sentido de normalizar as relações EUA-China, e fê-lo. Mais de meio século depois, continua a ser visto por muitos em Pequim como um “amigo da China”. Em maio, o órgão de comunicação estatal, Global Times, chegou mesmo a elogiar a “mente afiada” de Kissinger, que tem estado preocupado com o caminho que as relações entre as duas potências assumiram nos últimos anos.

“A China está pronta”

Na reunião com o antigo político norte-americano, Xi considerou-o um “velho amigo” e vincou a relevância que o episódio há 52 anos teve. “Nunca esquecemos os nossos velhos amigos, nem a contribuição histórica para promover o crescimento das relações EUA-China e aumentar a amizade entre os dois povos”. Na semana passada, o órgão de comunicação estatal, Xinhua, escreveu que “a decisão trouxe benefícios para os dois países e mudou o mundo”.

Kissinger, agora com 100 anos de idade, também esteve mais de 100 vezes na China, facto evidenciado por Xi durante a reunião. “Estes dois 100 dão um significado especial a esta visita”, disse. Dado o contexto geopolítico atual, Xi enfatizou que “a China e os Estados Unidos estão mais uma vez numa encruzilhada que requer uma decisão dos dois lados sobre como seguir daqui em diante”. A chave, segundo o líder chinês, é seguir os princípios de mútuo respeito, coexistência pacífica e cooperação win-win. “A China está pronta para, nestas bases, explorar com os Estados Unidos a maneira certa para os dois países se darem bem”, disse durante o encontro com Kissinger, esperando que este seja uma das vozes nos Estados Unidos que ajude na reconstrução das relações.

Kissinger disse que é imperativo manter os princípios estabelecidos no Comunicado de Xangai e respeitar a importância que a China atribui ao princípio de uma só China. “As relações entre os nossos países serão centrais para a paz no mundo e para o progresso das nossas sociedades”, disse durante o encontro com Xi. “Por muito difícil que seja, ambas as partes devem tratar-se como iguais e manter o contato. É inaceitável que tentem isolar-se ou separar-se um do outro.”

“Sabedoria diplomática”

“A política dos Estados Unidos em relação à China precisa de uma sabedoria diplomática ao estilo de Kissinger e de uma coragem política ao estilo de Nixon”, disse o diretor do Comité Central do Partido Comunista Chinês para as Relações Exteriores, Wang Yi, depois do encontro com Kissinger.

Pequim, ao não encontrar eco entre democratas e republicanos dos EUA, tem apostado também na receção de líderes empresariais e, desta vez, Kissinger. Ouvido pelo The New York Times, Zhu Feng, professor de relações internacionais da Universidade de Nanjing, afirmou que a visita de Kissinger demonstra que Pequim quer “persuadir as elites políticas americanas a reduzir a sua repressão estratégica à China”, num momento em que vozes como a de Kissinger “são cada vez mais raras em Washington”.

“Isto parece-se muito com uma estratégia chinesa deliberada” para cortejar indivíduos que possam ajudar a mudar as opiniões em Washington, disse Dennis Wilder, antigo diretor de análise da China na Agência Central de Inteligência (CIA), citado pelo New York Times. “A China está a estimular aqueles que têm um interesse especial na economia chinesa e na relação global.”

Política económica

A realidade é que desde o início do ano que líderes empresariais, como Bill Gates e Elon Musk, também viajaram para a China para encontros com altos representantes.

Segundo analistas, estes serviram para promover a reabertura da China depois da pandemia e destacar a relação de longa data e os perigos inerentes a uma guerra económica.

Quando Musk foi à China, foi saudado como um defensor da abertura comercial entre os Estados Unidos e este país. Estas visitas são também uma oportunidade para a China mostrar às empresas estrangeiras que podem confiar no mercado chinês. “A viagem de Musk mostrou a firme confiança das empresas americanas no mercado chinês, apesar dos ruídos de “dissociação” de alguns políticos ocidentais”, escreveu o Global Times, um órgão de comunicação estatal.

Uma mensagem que se tornou ainda mais importante depois das autoridades chinesas terem invadido os escritórios ou interrogado o pessoal de empresas de consultoria americanas como a Bain & Company, assustando muitas empresas estrangeiras, defende Yun Sun, diretor do programa para a China no Centro Stimson, em Washington. “A China, de um modo geral, quer reter os investidores estrangeiros, e os que têm sido atraídos são as grandes empresas de alta tecnologia que ainda podem ver o apelo do mercado chinês”, disse Sun, citado pelo New York Times. “A China quer mostrar que a cooperação e o cumprimento das regras de Pequim são recompensadores”.

China “não deve tornar-se na União Soviética”

Zheng Yongnian, professor de política na Universidade Chinesa de Hong Kong (Shenzhen), acredita que se a tendência atual entre os dois países se mantiver, então haverá guerra “nos próximos cinco a 10 anos”. “As visitas que altos funcionários americanos fizeram recentemente à China são importantes. Mas estas e as questões que abordaram não alteram o fator-chave das relações entre a China e os Estados Unidos”, disse numa entrevista publicada pela Xiakedao, uma conta de WeChat que pertence ao Diário do Povo, outro órgão de comunicação estatal chinês.

“No passado, o fator-chave para que os EUA e a União Soviética se sentassem realmente para negociar foram as armas nucleares, e a dissuasão nuclear mútua criou uma paz armada. Atualmente, Kissinger acredita que a base para negociações verdadeiras entre a China e os EUA é a tecnologia de inteligência artificial”. O académico explica que as reuniões de alto nível com Kissinger servem para “enviar um sinal positivo de que a China quer retomar o diálogo e contribuir para a estabilidade mundial”.

Na sua opinião, as potências não podem chegar ao ponto de não retorno, pois “uma guerra seria um desastre não só para a China e os Estados Unidos, como também para o mundo inteiro”. Por isso, “ambos consideram necessário manter os canais de comunicação abertos”. Contudo, alerta Pequim, “deve ter uma compreensão correta dos EUA”.

“Como os EUA consideram a China um adversário, os principais grupos de reflexão do país estão a concentrar o seu poder de investigação na China. Isto faz com que muitas pessoas que não entendam e estudem a China (…), e aqueles que realmente entendem são rotulados como ‘pró-China’ e excluídos do círculos-chave”.

Por essa razão, aconselha a uma “postura estratégica” por parte da China, “que não deve tornar-se na União Soviética ou nos EUA”, mas sim seguir um “caminho de ascensão com características chinesas”. “As três iniciativas globais sobre segurança, desenvolvimento e civilização que apresentou são muito boas e devem ser seguidas em conformidade.”

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