O que há em nós é cansaço, acima de tudo cansaço

Dos heterónimos de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos é o meu preferido. Todos temos um. Eu gosto da sua modernidade, da sua fleuma britânica e do seu pessimismo decadente. E um dos poemas de que mais gosto do bom velho Álvaro intitula-se: “O que há em mim é sobretudo cansaço”. A primeira estrofe diz-nos o essencial: “O que há em mim é sobretudo cansaço – não disto nem daquilo, nem sequer de tudo ou de nada: cansaço assim mesmo, ele mesmo, cansaço”.
Com a Europa mergulhada numa segunda vaga da Covid-19, ainda mais grave do que a primeira, eis que também Portugal se prepara para anunciar mais medidas restritivas para conter a pandemia que no nosso país superou a barreira dos quatro mil casos na quinta-feira.
Ninguém quer estar no lugar de um António Costa, de um Pedro Sanchez ou de uma Angela Merkel. É certo. Mas pede-se justeza nas medidas e o mínimo de congruência. No difícil equilíbrio entre a segurança sanitária e saúde pública versus a saúde económica, ninguém tem dúvidas de que haverá muitas baixas por contabilizar relacionadas com as duras restrições impostas. Negócios que fecham, milhares no desemprego, outros milhares em depressão psicológica.
É preciso conter a pandemia, sim. Mas na aplicação de medidas por tentativa e erro, sem certezas científicas de quase nada, se calhar era preferível apostar na fiscalização das que já estão em vigor do que aplicar novos estados de emergência e até o possível recolher obrigatório.
Já percebemos que o novo coronavírus vai estar entre nós, alojado sem pagar renda por muitos anos. Também já se sabia que a segunda vaga ia doer. Porque não se capacitaram os os hospitais em sete meses? Porque se andou em avanços e recuos no uso da máscara? Porque se permitiu Fátima, o Avante e a Fórmula Um quando nada mais foi permitido?
E sim, a responsabilidade individual também conta. E para precaver da irresponsabilidade de muitos há um quadro sancionatório previsto na lei. Agora não nos lixem com a incoerência. Cada vez mais há cansaço, nosso, do governo, de todos. E se continuarmos nos intermitentes estados de emergência, desse monstro chamado cansaço vão sair tentáculos que se agarram à pele como os do polvo, sensores de uma profunda depressão coletiva.
Seja o que for que António Costa comunique ao país no sábado que o explique muito bem, que não deixe dúvidas a pairar sobre a justeza das medidas e que consiga também dar uma réstea de esperança. Sem ela não há pandemia que seja travada e muito menos a invisível, a do medo, esse vírus que já se apoderou de todos.
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