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O Chiado e o cozinheiro nepalês

Ferreira Fernandes

Desculpem mas tenho de fazer um mapa – e têm mesmo de me desculpar, pois estou a escrever uma crónica para um jornal digital que “transmite” de Macau, tão longe. O que vou contar precisa de mapa, aconteceu esta semana em Lisboa e num lugar muito simbólico, o Chiado. Para chegar lá sobe-se pela rua Garrett. Almeida Garret foi um famoso escritor português do século XIX com escrita, à vez, clara e académica, que inspirou autores como o brasileiro Machado de Assis, a quem dediquei a crónica na semana passada.

Então, pela Garrett (leiam bem pronunciado o t, porque, dizia o próprio, há dois tt para ao menos lerem um), chega-se ao largo do Chiado. Começa-se com um notável e chega-se a uma multidão de famosos. Desde logo, um homem de chapéu e laço, sentado à cadeira de uma mesa de café e de perna cruzada. Tudo em bronze e tamanho natural, Fernando Pessoa, claro. Ele saiu da casa onde nascera, a dois passos, deu meia-volta ao quarteirão, não mais, e abancou à porta daquele café, A Brasileira. Ali onde está sentado, o talvez maior poeta português é vigiado, a 100 metros de distância, pelo outro talvez maior poeta português, Luís de Camões. Este, do alto de um pedestal, acolitado por outras oito estátuas, de nomes grandes da literatura (Fernão Lopes, Azurara, João de Barros…), olha o adversário sentado e de perna cruzada.

País de poetas, pode discutir-se, mas aquelas duas praças lisboetas contíguas são garantidamente uma academia pegada. E se do largo do Chiado, em vez de avançar para Camões, virarmos pela rua do Alecrim, mais 100 metros e voltamos a dar com estátua de fino recorte literário. É Eça de Queirós, de pé e gentil, segurando uma soberba mulher, de seios nus e braços abertos, voluptuosa… Conta-se que uma empregada da família, quando da inauguração da estátua, três anos depois da morte do escritor, em 1903, inquirida por um jornalista, deu a sua opinião: “O senhor doutor está tal e qual. Mas a senhora dona Emília, naqueles preparos!…” Na verdade, não se trata da mulher do escritor, Emília Resende, mas a Verdade, como esclarece a frase célebre de Eça, esculpida na base do monumento: “Sobre a nudez forte da Verdade o manto diáphano da fantasia”.

Sempre próximas do Chiado, podem ainda encontrar-se mais referências a grandes vultos das letras portuguesas. A três ou quatro quarteirões, adentrando pelo Bairro Alto, encontramos o marco inicial de Camilo Castelo Branco, que nasceu numa casa da rua da Rosa. Sim, o grande transmontano e filho das Terras de Basto, o minhoto de São Miguel de Seide e portuense da Cadeia da Relação, começou por ser um bebé lisboeta, nascido vizinho da capital simbólica que é o Chiado. E por último, para esta crónica não se confundir com um rol dos melhores escritores de Portugal, a estátua mal amanhada do Padre António Vieira, o do português límpido, erguida no largo da Misericórdia, sempre no pequeno círculo com epicentro no Chiado.

Aí, nesse largo, também jaz em bronze António Ribeiro Chiado, poeta contemporâneo de Camões e com obra vasta e toda esquecida, suspeita e desprezada. O poeta dizedor dos seus versos, frade libertino, lenda sem livro, famigerado que atravessou séculos, a ponto de a cidade lhe erguer um monumento sem ela alguma vez o ter lido. Sentado num banquinho inclinado, Chiado dirige-se a quem passa e com o à vontade do provocador que foi sempre. Sorri, sarcástico. Como não, se foi ele que deu o nome ao lugar capital da cidade capital? Sim, em estátua todos à volta são maiores do que ele – mas é ele que assina o local. E é para esse local que vos convoco.

Por isto: esta semana, no largo do Chiado, lembrei-me das palavras maravilhosas de um sábio contemporâneo. Por várias vezes já citei o escritor franco-libanês Amin Maalouf. Nunca o fiz pelo seu estilo, quem sou eu para dizer mais quando ele já foi Prémio Goncourt e é membro da Academia Francesa? Trago-o para as minhas crónicas por uma preciosa lição que nunca é demais repetir, pois ele fala de uma das questões momentosas dos tempos modernos – a cada vez mais comum viagem dos homens, da vida quase inteira de cada um passada em terras diferentes daquela que o viu nascer. Enfim, o imigrante no novo porto, diferente da sua casa de origem.  

Maalouf nasceu no Líbano e com dupla condição, é árabe e é cristão. Tem 71 anos, conheceu o Levante ainda este era terra de diálogo, viveu-o como país de várias culturas. Tudo isso se transformou em tragédia, razão bastante para ouvir os lúcidos. Num dos seus romances, Samarcanda, ele traz o persa Omar Khayyam, poeta medieval, matemático e amante do vinho. Maalouf conta a viagem secular de um manuscrito de Khayyam que acaba por naufragar com o Titanic. A metáfora é: pode acabar mal, mas a viagem das civilizações é feita em conjunto. Este homem, Amin Maalouf, nosso contemporâneo, conhece a dupla condição de cristão no Médio Oriente e de árabe na Europa, e com esse saber de experiência feito, permitiu-se pensar o que fazer com os imigrados.

Sobre os direitos deles, é mais eficaz tentar influenciar e pressionar as autoridades e a opinião pública da terra de acolhimento – isto é, hoje, a Europa e os seus países – para que esta se transforme num justo e feliz porto de abrigo. Nessa matéria, direitos, há bastantes movimentos, discursos e políticas a favor e também há contra, cada vez mais poderosos. Não é isso que interessa a Maalouf. A sua originalidade foi dirigir o discurso para os próprios imigrantes, interpelá-los sobre a obrigação deles em serem atores capazes de influenciar o novo destino. E porque Amin Maalouf fala para o imigrado, não o iludiu com direitos, tentou, isso sim, fortalecê-lo com deveres. Falou-lhe só de deveres: primeiro, aprender a cultura da terra de chegada; segundo, oferecer a esta o que trouxe da terra natal…

Como já disse, cito muito esse Amin Maalouf, experiente de vida, comovido que fico com o seu mundo generoso e prometedor, tal como eu o desejo e é tão necessário. Mas também o faço razoavelmente cínico, cito-o como descargo de consciência, não muito crente: talvez as palavras de Maalouf sejam só de um académico… Bonitas, não mais.

Esta semana, quinta-feira, fui ao café A Brasileira, no Chiado, para um debate, sem cuidar que iria reencontrar Maalouf. Em tempos de confinamento um café abrir-se à conversa, era animador. O antigo e belo café, fundado em 1905, frequentado durante décadas por intelectuais lisboetas ao vivo, remodelou-se recentemente. O salão ganhou luz e a tertúlia semanal, esta semana iniciada, é um flash prometedor. É uma homenagem bonita a George Steiner, o crítico literário e filósofo franco-americano recentemente falecido (em fevereiro) que, no livro A Ideia de Europa, escreveu: “A Europa é feita de cafeterias, de cafés.” E o primeiro exemplo que ele deu de fazedor foi Pessoa, o tal poeta de perna cruzada à porta de A Brasileira.

O primeiro debate não foi tão ambicioso, não tratou de fazer a Europa, mas tão só como reconstruir Lisboa no pós-covid. O presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, esteve presente e foi a ele que se dirigiu um dos participantes, vestido de fato de trabalho. Para o trabalho ele iria uma hora depois, para o bairro das Mercês, tal como estivera, no dia anterior, no bairro Madre de Deus. O chef Tanka Sapkota, durante 24 dias, anda a percorrer 24 bairros, onde instala uma cozinha volante e faz 200 pizzas diárias que distribuiu gratuitamente por quem precisa.

Sapkota é nepalês, na década de 90 foi para Alemanha, onde soube do gosto dos alemães pela comida italiana. Como diria o sábio académico Amin Maalouf: “Primeiro, aprender a cultura da terra de chegada.” Sapkota aprendeu tão bem e tão rápido que se tornou uma autoridade em tagliatelle, ossobuco, risoto e outros cacio e pepe. Teve um percalço na integração: as leis alemãs eram muito lentas nos vistos de trabalho. Então veio para Portugal, onde os procedimentos legais eram mais lestos, o que lhe permitiria, e era essa a sua intenção, depois tentar outro país da EU. Acontece que se apaixonou por Portugal mandou vir a mulher.

Fizeram os filhos cá e por cá fizeram três restaurantes de comida italiana e num deles, no Il Mercato, compram-se também os melhores enchidos e queijos italianos. E abriram  um restaurante de comida da terra natal, a Casa Nepalesa. Tanka Sapkota já estava na fase 2 de Maalouf: “Segundo, oferecer à terra de chegada o que trouxe da terra natal.” Foi com essa vida sua, que ele conhece bem porque lhe saiu do pelo, e com a sabedoria de Amin Maalouf, de quem provavelmente nunca ouviu falar, que Sapkota esta semana interveio n’A Brasileira. Abanou o rabo de cavalo (estava nervoso), deitou olhar incendiado que perturba os interlocutores que não o conhecem e começou com a voz suave que rapidamente os interlocutores logo lhe reconhecem. Dirigiu-se a Medina: “Sou nepalês, vim para Portugal há 24 anos e gosto muito de Lisboa”, apresentou-se. E perguntou: “Que conselho me dá para eu ajudar Lisboa?”

Fernando Medina respondeu: “Continue.” Era o que faltava, os políticos ousarem emendar os bons cidadãos.  

*Jornalista

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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