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Bicho papão sem cara

A afirmação é da psicóloga Joana Sousa. O covid-19 mexeu com o quotidiano de Macau e no caso dos mais jovens ainda mais, uma vez que é expectável que as escolas só abram portas em Abril. O Plataforma ouviu ainda as famílias que fazem o que podem para entreter os miúdos.

Ensino online. Tarefas entregues por e-mail. Alunos fechados em casa. Enfim, o surto do novo coronavírus mudou completamente o status quo das escolas de Macau. E agora? Como ocupar o tempo das crianças?

Não há grande volta a dar. É preciso inovar. Mas como? “O ponto positivo é o maior tempo que os pais passam com as crianças. Isso é importante, porque muitos pais estão em casa e podem promover brincadeiras com os filhos”, referiu ao Plataforma a psicóloga clínica Joana Sousa.

Marisa Peixoto, diretora do Jardim de Infância Dom José da Costa Nunes, disse concordar com esta avaliação. Contudo, “há uma parte social que se perde” e esse é o contra disto tudo. “De repente, as crianças deixam de ter os amigos habituais com quem brincam diariamente, sem qualquer explicação”.

Paralelamente, há outro desafio nas mãos de educadores e professores: as crianças com necessidades educativas especiais. “O nosso jardim-de-infância tem 16 crianças inclusivas que precisam de um acompanhamento mais presencial, mas que, infelizmente, devido às circunstâncias, não podem ter. Isso deixa-me muito preocupada”, desabafou Marisa Peixoto.

“O coronavírus é um bicho papão sem cara que mexeu com a rotina das pessoas. Estamos a viver um momento crítico que também cria oportunidades de aprendizagem como a introdução de novos hábitos de higiene e cuidados de saúde. O brincar e as atividades do dia-a-dia proporcionam momentos de aprendizagem que não devem ser desvalorizados e onde os pais desempenham um papel determinante como modelos, orientando as crianças na execução dessas tarefas. Estes são aspetos cruciais para o desenvolvimento da autonomia, do sentido de competência e da criatividade”, concluiu Joana Sousa.

Pais e alunos “não estão preparados”

No primeiro ciclo a coisa já é a “doer”. Uma docente da Escola Portuguesa de Macau, que pediu para não ser identificada, revelou ao Plataforma que este tempo em que os alunos ficam por casa devido ao Covid-19 “poderá afetar terrivelmente a aprendizagem” das crianças.

Não se poder dar aulas presenciais, “mesmo que a turma se reúna por videochamada”, torna “tudo mais difícil”. “No primeiro ciclo as crianças ainda não são autónomas para determinado tipo de ensino domiciliário. 75 por cento dos meus alunos não dominam a língua portuguesa”, apontou.

Para a docente, os alunos e os pais “não estão preparados” para “situações como estas”. “Estou muito preocupada. Seguimos um caminho, estipulado por um currículo, que é preciso cumprir e consolidar. Este afastamento das crianças da escola, não ajuda em nada essa consolidação. Receio que as lacunas provocadas por esta situação tenham consequências profundas em alguns dos estudantes, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade.”

Se “os alunos não falam português em casa” e se “na hora do recreio falam inglês ou cantonês”, é muito difícil “fazer um exercício de leitura, de interpretação de um texto e de escrita” nestas condições, avaliou.

Contudo, para a docente do primeiro ciclo nem tudo é negativo. “Acho proveitoso as crianças passarem este tempo com os pais. Espero que tenham desenvolvido atividades de qualidade e bons hábitos nas crianças. É pelo menos enriquecedor, que os pais tenham tido a consciência das reais capacidades académicas dos filhos”, concluiu.

Jovens de férias, pais preocupados

Como resposta ao surto, o governo local anunciou que escolas básicas e infantários de Macau deverão continuar fechados até finais de abril. Com quase dois meses até ao reinício das aulas, alguns pais partilharam a sua preocupação com o Jornal Plataforma, tendo agora que voltar ao trabalho e tomar conta dos filhos ao mesmo tempo. Alguns encarregados de educação dizem também que têm saído com os filhos todos os dias, “não havendo motivo de preocupação”. Alguns jovens partilham que ultimamente “dormem quando querem”, esperando voltar à rotina quando as aulas se reiniciarem.

Na passada segunda-feira, Lu levou o seu filho, aluno do 5.º ano, ao Jardim da Flora. O plano era levá-lo a andar no teleférico, mas infelizmente estava fechado. De acordo com a mãe, em casa as crianças só sabem ver televisão, jogar no telemóvel ou no computador, e por isso sempre que não trabalha gosta de levar o filho a “apanhar ar”. É também da opinião que o adiamento do início das aulas para abril é preocupante para os pais. “Quando trabalho, ele fica em casa a jogar videojogos. Quando não preciso de ir trabalhar, vou com ele passear, mas não sei bem que atividades existem para pais e filhos, e o mais provável é que ele volte aos videojogos mal chegue a casa.” Uma saída à rua significa menos uma máscara, que poderia ser usada mais tarde quando as aulas reiniciarem, criando um dilema. 

Na Colina da Guia, Hou está a jogar badminton com o seu neto, aluno do 3.º ano. O mesmo diz que a vida das crianças em casa não é saudável, e como tem tempo agora que está reformado aproveita para jogar badminton e beber chá com o seu neto, e à tarde existem algumas atividades com outros colegas da criança. Acrescentou ainda que acredita que as autoridades poderão dar início às aulas mais cedo do que o esperado: “Se não houver grandes problemas devem reiniciar mais cedo. Em relação às notas, as escolas devem ser realistas a decidir quem passa de ano.”

Às 10 e pouco da manhã um grupo de adolescentes juntava-se numa parte alta da Colina da Guia. Entre eles, Pan, aluno do 10.º ano, diz que costumava ter de se levantar às 7 e meia da manhã, mas agora “dorme e acorda quando quer”: “Na verdade, não durmo desde ontem à noite, depois das aulas começarem devo precisar de uns dias para o meu relógio voltar ao normal.” Sobre o próximo mês de férias, partilha que irá procurar um part-time, ou então focar-se na música ou noutros interesses.  

GONÇALO LOBO PINHEIRO / Johnson Chao 06.03.2020

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