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Trancas à porta

Médicos e enfermeiros de Hong Kong entraram esta semana em greve para exigir o fecho das fronteiras com a China continental. Mas o pessoal médico teme que a medida poderá já vir tarde para evitar um surto de coronavírus para o qual a cidade não estará preparada.

Na semana passada Benjamin So, especialista em medicina interna num hospital de Hong Kong, observou um casal de idosos que tinha viajado de Wuhan, capital da província de Hubei, no centro da China continental. Poucos dias depois, exames laboratoriais confirmaram que os dois pacientes estavam infetados com o novo coronavírus (2019-nCoV).

Apesar da direção do hospital não levantar quaisquer problemas, sublinhando que Benjamin So tinha usado material de proteção, o jovem de 27 anos decidiu ficar em quarentena. Para proteger também os pais, com quem vive, mudou-se durante duas semanas para um hotel.

“Neste momento, não temos suficiente conhecimento científico para ter a certeza de como se propaga o coronavírus”, afirmou Benjamin So ao PLATAFORMA. “Seria irresponsável ser o próprio médico a colocar em risco a saúde dos colegas e pacientes”, sublinhou.

O jovem disse que não é o único alarmado com o que diz ser a falta de resposta da Autoridade Hospitalar de Hong Kong. “Os enfermeiros estão particularmente preocupados. Eu talvez esteja com um paciente durante 15 minutos, mas são eles que tomam conta deles todos os dias. Basta um erro para serem infetados”, explicou o médico.

Riscos que esta semana levaram mesmo uma associação que representa 13 mil trabalhadores dos hospitais públicos de Hong Kong, a Hospital Authority Employees’ Aliance (HAEA), a convocar uma greve por termo indeterminado.

Cerca de 80 mil pessoas – incluindo médicos, enfermeiros e pessoal não-médico – trabalham nos hospitais públicos do território. Hong Kong conta com perto de 15 mil médicos, distribuídos pelo setor público e clínicas privadas.

“É uma decisão muito difícil para um médico, entrar em greve” numa altura tão sensível, admitiu Benjamin So. “Muitos profissionais decidiram não aderir para não prejudicar os pacientes, embora apoiem as nossas exigências”, sublinhou.

“Ou fecham ou não”

No Queen Mary, um dos principais hospitais de Hong Kong, a manhã de segunda-feira começou com dezenas de profissionais de saúde a registarem-se como participantes na greve, enquanto ativistas com um laço branco na lapela distribuem panfletos.

Um deles é Victor, enfermeiro no hospital Queen Mary, que explica ao PLATAFORMA as reivindicações da HAEA. “Queremos que o Governo diga a todas as pessoas de Hong Kong para usar máscaras”, afirmou o jovem de 26 anos.

As autoridades têm sido acusadas de relutância em encorajar a população a usar máscaras médicas, numa altura em que continuam a lutar nos tribunais para implementar uma proibição ao uso de máscaras, introduzida durante os recentes protestos pró-democracia.

A HAEA exige também o encerramento de todas as fronteiras com o Continente, algo que o Governo recusou, alegando que poderia criar “um estigma” contra os chineses do Continente. “Se o Governo tiver medidas para melhorar a situação, estamos abertos ao diálogo”, prometeu Victor.

Após o primeiro dia de greve, a Chefe do Executivo de Hong Kong anunciou o encerramento de quase todas as fronteiras, com exceção do posto na Baía de Shenzhen e da ponte que liga a cidade a Macau e Zhuhai. Ainda assim, Carrie Lam alegou que a decisão “não tem absolutamente nada que ver com a greve”.

A associação de trabalhadores dos hospitais públicos de Hong Kong decidiu continuar com a greve, algo que Benjamin So apoia. “Ou se fecham todas as fronteiras ou não. Caso contrário as pessoas vão simplesmente passar a usar as que permanecem abertas”, explicou o médico.

Surto à vista

De acordo com um estudo da Hong Kong Public Opinion Research Institute, uma organização independente, realizado na semana passada, 61 por cento dos inquiridos apoiam a greve e 80 por cento defendem a suspensão da entrada em Hong Kong de residentes da China.

Um quase consenso que se tem tornado raro numa altura de polarização política na cidade, depois de sete meses de protestos. “Tenho amigos amarelos [pró-democracia] e azuis [pró-Governo] mas todos estão unidos nesta questão”, salientou Benjamin So.

Um deles é Sam Shei, líder da ILEA HK – The International Live Events Association Hong Kong, um grupo de organizadores de eventos. “Até concordo com o encerramento temporário das fronteiras. Acho que poderia ajudar”, assumiu ao PLATAFORMA o empresário.

A presidente da HAEA acredita que a classe tem o apoio da população. “A maioria das pessoas percebe que, se não encerrarmos as fronteiras, surgirão cada vez mais casos”, insistiu na segunda-feira Winnie Yu Wai-ming. “Temos de agir rapidamente.”

Benjamin So, por sua vez, teme que seja já tarde demais tendo em conta que “há já alguns casos suspeitos” em que o contágio terá acontecido no território. Segundo a rádio pública de Hong Kong RTHK, o primeiro aconteceu com uma sexagenária que permaneceu na cidade nas últimas duas semanas, período de incubação do coronavírus.

Winnie Yu acredita que muitos visitantes oriundos do Continente não têm indicado, ao chegar a Hong Kong, que estiveram em Hubei. “Tendo em conta os números da semana passada, todos acreditamos que Hong Kong irá em breve enfrentar um surto”, admitiu a responsável.

A cidade não está “nem de longe nem de perto” preparada para lidar com um surto grave, avisou Benjamin So. Há falta de quartos para isolamento de pacientes e as reservas de máscaras médicas só chegam para três meses. “Se a situação se prolongar, poderemos ficar sem material mesmo para o pessoal de primeira linha”, avisou o especialista. 

Nova dor de cabeça para a economia

Os primeiros casos de coronavírus de Wuhan são mais “um golpe muito duro” para a economia de Hong Kong, cuja reputação como um centro financeiro seguro foi afetada pelos recentes protestos pró-democracia, lamenta uma associação de organizadores de eventos.

A economia de Hong Kong terminou 2019 em recessão, pela primeira vez numa década, confirmou o Departamento de Estatísticas e Censos na segunda-feira. Mas, com os protestos pró-democracia a perderem gás, os analistas esperavam uma forte recuperação este ano.

Previsões que mudaram a 22 de janeiro, quando as autoridades de Hong Kong anunciaram que testes preliminares tinham confirmado os primeiros dois pacientes infetados com o novo coronavírus.

“É um golpe muito duro” para todos os setores económicos do território, disse ao PLATAFORMA Sam Shei, presidente da ILEA HK – The International Live Events Association Hong Kong, um grupo de organizadores de eventos.

O setor dos serviços de Hong Kong, “particularmente em áreas relacionadas com o turismo, será o mais vulnerável”, avisou a empresa de notação financeira Fitch Ratings no mês passado.

Na sexta-feira, a rival Goldman Sachs foi mais longe, ao rever em baixa da previsão para o crescimento do PIB da cidade durante o primeiro trimestre de 5,6 por cento para 4 por cento. A principal razão apontada pela empresa foi o impacto do coronavírus nos setores do turismo, retalho, hotelaria e restauração. A Goldman Sachs acrescentou ainda que um surto prolongado poderia mesmo limitar o crescimento económico de Hong Kong durante 2020 a menos de 5 por cento.

De mal a pior

O setor das convenções e exposições já está a sentir o aperto, admitiu Sam Shei, com praticamente todos os eventos marcados para este mês já cancelados ou adiados indefinidamente.

O empresário dá como exemplo uma conferência que iria reunir a meio de fevereiro em Pequim cerca de 100 gestores de uma seguradora na região da Ásia-Pacífico. Após o surto de coronavirus, o evento foi inicialmente transferido para Hong Kong, mas finalmente foi suspenso.

Enquanto alguns organizadores estão otimistas e acreditam que a situação se resolva “em dois ou três meses”, para outros há apenas incerteza, admite Sam. Afinal, “não é possível prever quando é que um vírus vai desaparecer”, lamentou o empresário.

“De mal a pior”, resumiu ao PLATAFORMA David Andrews, vice-presidente da ILEA HK. “Numa altura em que os protestos estavam finalmente a acalmar, acontece isto”, lamentou o empresário, referindo-se ao movimento pró-democracia que há quase oito meses marca a vida na cidade.

As manifestações “prejudicaram sem dúvida a reputação” de Hong Kong como um local seguro para acolher grandes eventos internacionais, defendeu Sam Shei. O empresário deu como exemplo a longa lista de eventos cancelados, desde o Open de Ténis feminino ao festival de música Clockenflap.

Mesmo antes da epidemia de coronavírus, organizadores já estavam “muito hesitantes” em marcar novos eventos em Hong Kong, diz Sam. “Ainda havia eventos na primeira metade deste ano, já marcados há muito, mas depois disso a história era outra,” acrescentou. 

Vítor Quintã 07.02.2020

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