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Macau e as suas gentes

O PLATAFORMA foi perceber como era Macau há 20 anos pelo olhar de cidadãos comuns que duas décadas depois se mantêm nos ofícios que tinham à data da transição. Procurámos, sem sucesso, falar com pessoas que vivem em Macau com o estatuto de trabalhador não-residente. 

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Há quentes e boas, mas sem refrão

Chama-se António Chao. Continua no negócio do pai, iniciado na década de 50 do século XX: assar e vender castanhas no largo do Leal Senado, mas sem o refrão “há quentes e boas”. A época da castanha começa a 1 outubro e vai até fevereiro ou março seguintes.

Anda nesta vida desde meados dos anos oitenta. Sempre no Leal Senado. Quando não assa castanhas, que lhe chegam da China, faz pulseiras, brincos e anéis.

Entre a década de 90 e os dias de hoje, uma das alterações mais visíveis aconteceu na praça onde sempre esteve o negócio. A banca não se moveu mais de meia dúzia de metros, entre duas esquinas, mas o trânsito de veículos “na praça, desapareceu”. Hoje está pavimentada com calçada portuguesa e só circulam pessoas.

“No passado, por esta altura do ano, com a chegada da noite apareciam mais clientes. Vinham para o antigo cinema [ao lado do edifício do Leal Senado] e levavam uma embalagem de castanhas para comer enquanto passavam os filmes. Hoje, o negócio faz-se logo pela manhã, com a chegada dos grupos de turistas à zona histórica da cidade”, diz.

A máquina onde continua a assar as castanhas – a única de que tem memória – é a mesma de há 50 anos. Cada rodada de castanhas demora entre 30 a 45 minutos a assar, esclarece.

“Foi uma ideia do meu pai, a partir daquelas máquinas [betoneiras para cimento]. Teve a ideia de pedir a um amigo para lhe fazer uma, mas mais pequena. Continua a ser a mesma”, explica.

Nascido em Macau, tal como o pai, Chao Pak Cheng, António Chao não tem a memória exata do custo das doses nos idos de 90, “mas andava entre as 3 e as 10 patacas. Hoje, custam 16, 20 ou 30 patacas”.

“Quantos quilos vendemos por dia? Não sei, depende se faz chuva ou sol. É um negócio que vive da passagem dos turistas”, conclui.

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Fatos por medida, um clássico que vem de longe

Iu Cheong, de 66 anos, começou a trabalhar na Alfaiataria Domingos, na baixa, com 16. Já lá vai meio século.

Assegura que ali por 1999, há 20 anos, havia mais portugueses do que chineses a fazer fatos por medida. “Por aqui passavam os mais ricos e influentes da comunidade”. De governadores a quadros da administração, de deputados a advogados. Até o antigo presidente português Mário Soares tirou medidas na Alfaiataria Domingos.

“Hoje em dia, o público é diferente. Maioritariamente chinês. Mas também ricos”, diz o alfaiate. Todavia deixa uma ressalva: “com a campanha contra a corrupção do Presidente Xi, baixou o número de chineses a fazer aqui os fatos”.

Comparando 1999 com 2019, Iu Cheong tem poucas dúvidas. “Antes fazíamos, em média, uns 400 fatos por ano, hoje ficamos pelos 200”.

Ali trabalham cinco pessoas, quatro das quais aprenderam com Iu Cheong.

Em 1999 fazer um fato custava, em média, cinco mil patacas. 20 anos depois, o preço mais do que duplicou e ronda as 12 mil patacas para o mesmo tipo de tecido, diz.

“O que mudou mais? O tipo de corte dos fatos, sobretudo nas golas. Deixaram de ser tão largas e altas. Agora têm uma aparência mais elegante”, assegura.

Muitos dos chineses que continuam a passar pela alfaiataria chegam de Pequim, Xangai e Shanxi, adianta. E, entre os clientes, estão dirigentes de algumas províncias chinesas, afirma, sem especificar. 

O que não mudou nestes 20 anos, além do espaço da loja, foi o tempo para se fazer um fato à medida: dois dias.

O preço mais elevado por um fato? “Se for em vicuña, um tecido mais exclusivo, chega às 138 mil patacas. Mas também fazemos fatos a cinco mil. Depende tudo do tecido”, assevera.

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Peixaria Chan Hoi Kei  “Já não é o que era”

No Largo do Senado raramente se consegue meter o pé. E era assim no Mercado de São Domingos em 1999. Atrás da bancada onde vende peixe, Chan assistiu a muita mudança desde que para ali foi, em 1988. “Agora, há menos gente a vir ao mercado. Nesta zona, só vive gente mais velha”, conta o peixeiro, que diz que o mercado no centro da cidade se ressentiu com o desenvolvimento. “É como se fosse sempre época baixa. Há outras zonas onde abriram mercados e que têm prédios mais modernos, como a zona de Iao Hon ou da Ponte 16, onde os jovens preferem morar. E os jovens comem mais do que os velhos, portanto esses mercados são mais prósperos”, acrescenta Chan ainda no ativo apesar dos 79 anos. “Há 20 anos, ninguém se podia mexer com a quantidade de gente que passava por aqui todos os dias. Comparando com 1999, em termos de afluência e de receita, é menos de metade”, detalha. Enquanto vai atendendo um ou outro cliente, e descamando peixe, Chan constata que atualmente se ganha mais, mas que os produtos também são mais caros. “Com cem patacas, podíamos comprar muita coisa. Hoje não se compra quase nada”. Por dia, faz em média cerca de três mil patacas, quase três vezes mais do que em 1999, quando a receita diária oscilava entre as mil e as duas mil patacas. Não porque haja mais clientes, mas porque os preços subiram. Em 1999, um cat custava cerca de dez patacas. Agora ronda as 30 no peixe e marisco mais barato, os mais caros chegam às 40/50 por cat. Outra das diferenças que nota é na diversidade do peixe. Maior hoje porque na altura só se vendia o de alto mar e agora também há o de viveiro. Sobre os clientes, repara que havia muitos portugueses. “Mas não vinham à minha banca porque eu não sabia falar português”, refere, acrescentando que hoje há mais turistas mas que não compram. 

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Mercado paralelo “Mudanças? Não sei nada disso”

As Portas do Cerco, que separam Macau de Zhuhai, são uma das zonas mais movimentadas do território. Entre os turistas, também se encontram vendedores que fazem comércio paralelo que atravessam a fronteira com sacos cheios de produtos. Entre o Edifício Arco-Íris Compras e as ruas Um, Dois e Três do Bairro Va Tai, veem-se várias placas com a palavra “comerciantes”. Apesar do anúncio, as lojas servem apenas como pequenos armazéns e estão cheias de caixas de cartão. Os vendedores são quem transporta os bens para o Continente, conseguindo fugir aos impostos. Um deles, de Quanzhou, Fujian, e que prefere manter o anonimato, fala dos ossos do ofício. Percorre a rua Três do Bairro Va Tai com bengala e saco ao ombro, apesar dos 74 anos. Não sendo fluente em cantonês, usa a língua nativa e partilha que se mudou para Macau nos anos 80, tendo-se tornado residente de Macau. Desde cedo que trabalhava como costureira e ocasionalmente em Gongbei, vendendo alguns produtos. Há cerca de 10 anos, conseguia entre oito a dez patacas por cada viagem. Mais tarde, já sofrendo dos joelhos e sem emprego, decidiu que não queria ficar sempre em casa, e é por isso que continua a fazer a viagem para vender produtos cerca de duas vezes ao dia. No dia da entrevista, trazia perto de 40 garrafas de limpeza oral embrulhadas em papel para fazer uma entrega em Gongbei. Pela viagem iria receber 32 patacas. Um valor que diz variar conforme a dificuldade em passar o material na fronteira. Atualmente, ressalva, não ganha muito dinheiro, apenas o suficiente para comprar alguns vegetais. Sobre as mudanças que Macau sofreu nos últimos 20 anos, abana a cabeça de forma envergonhada e diz: “Mudanças? Não sei nada disso”. 

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Ardina Resiste à evolução dos tempos 

Na zona do Largo do Senado há um guarda-sol azul que se destaca. Pertence a uma banca de jornais com 40 anos. Além de jornais de Hong Kong e Macau, também se encontram postais, souvenirs, almanaques, revistas e livros, alguns proíbidos no Continente. A dona da banca, que prefere manter o anonimato, diz que a principal mudança que sente nas duas décadas que passaram é “o facto de as pessoas lerem cada vez mais no telemóvel e não comprarem jornais”. O negócio, acrescenta, não é muito lucrativo. Sobrteudo desde o desaparecimento dos livreiros de Hong Kong, tornado público em 2014, a ardina realça que as vendas de “livros proibidos” desceram extraordinariamente. A principal fonte de rendimento agora é o envio de jornais para serviços e empresas, sendo que poucas pessoas os compram. Na banca podemos encontrar tanto jornais em português como em chinês, que são os que se vendem mais. Ainda assim, a ardina diz que deixou de vender cerca de 400 cópias de jornais chineses para passar a vender apenas 200. Sobre os jornais em língua portuguesa, refere que normalmente só consegue vender 70 por cento dos que recebe. Uma coisa não mudou desde 1999: a maior parte dos compradores de jornais são pessoas de meia-idade e idosos. 

António Bilrero, Catarina Brites Soares, MEI MEI WONG 19.12.2019

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