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China e Vaticano, da desconfiança à fé

Pequim e a Santa Sé estão de relações cortadas há 67 anos, mas o diálogo foi retomado, confirma o Cardeal John Tong, apesar da nomeação de bispos continuar a ser um obstáculo. Um académico de Hong Kong acredita que esta “poderá ser uma boa altura” para um avanço nas conversações.

“O degelo das relações entre a China e o Vaticano é iminente, vai acontecer muito em breve, é uma questão de semanas ou meses”. A previsão foi feita em Macau pelo teólogo norte-americano Steve Bevans na semana passada, após uma palestra sobre os primeiros cinco anos do Papa Francisco.

O Cardeal John Tong é mais cauteloso: “O diálogo foi retomado e tem acontecido já há algum tempo, o que é bom”. Mas o bispo emérito de Hong Kong, em entrevista ao Plataforma, sublinha a natureza sensível deste assunto: “Tenho sempre muito cuidado. Mesmo quando calha ir a Roma para reuniões, nunca abro a boca para perguntar esse tipo de questões”.

Para já, o académicoAnthony S.K. Lam confirma que em declarações ao Plataforma “tem havido encontros não-oficiais com oficiais dos dois lados, ultimamente de forma mais frequente”. Por exemplo em 2016 uma delegação chinesa participou num colóquio sobre a ‘Laudato si’, a encíclica do Papa Francisco sobre alterações climáticas. No ano passado, a China respondeu, convidando a Igreja Católica para uma conferência em Yunnan, também sobre proteção ambiental.

Mas o investigador do Holy Spirit Study Centre, em Hong Kong, acredita que estes encontros “não significam nada” porque “não têm uma agenda concreta”. Ele vai mais longe e prevê que o status-quo se irá manter “por mais cinco ou 10 anos”.

Enquanto Pequim permanece focado nas disputas territoriais no Mar do Sul da China e na crise nuclear na Península da Coreia, o Papa Francisco tem estado a apagar fogos criados pela corrupção no Banco do Vaticano e abusos de menores por parte de padres. Para ambos os lados “as relações Sino-Vaticano são importantes, mas não urgentes,” resume o académico de Hong Kong.

“Uma boa altura” para mudança

Ainda assim, acrescenta o investigador, após a reunião do Partido Comunista Chinês ter reforçado o poder do Presidente Xi Jinping, “esta poderá ser uma boa altura” para tentar de novo “porque a situação política é tão estável”. “Se ele [Xi Jinping] assim quiser, pode iniciar negociações sobre relações permanentes com o Vaticano e ninguém se atreve a desafiá-lo”, admite Anthony Lam.

Por outro lado, defende Scott Bevans, o Papa Francisco “está muito interessado em conseguir que esta relação dê certo”. E acredita que a Igreja Católica tem o homem certo para esse objetivo. O teólogo relembra a visita à Birmânia em novembro passado, durante a qual o Papa Francisco não usou a expressão Rohingya para se referir à minoria muçulmana, a pedido da igreja local, de forma a não envergonhar o governo.

“Ele é o tipo de pessoa – como por exemplo o Cardeal Tong de Hong Kong – que está disposto a curvar-se um pouco em nome da unidade da Igreja, o que é mais importante que os princípios humanos,” acrescenta Scott Bevans.

O próprio Cardeal Tong é mais moderado, sublinhando que “qualquer negociação requer um compromisso, mas sem sacrificar os princípios”. No entanto, o septuagenário tem confiança na liderança da Igreja: “O Papa Francisco é corajoso, mas também muito sábio. Sabe até onde podemos ir e até onde não podemos ir”.

Bispos e terras

Um dos princípios que o Vaticano se tem recusado a pôr de lado é o poder de nomear bispos. Segundo Anthony Lam, as negociações que existiram têm-se limitado a “assuntos que o lado chinês considera técnicos, como a nomeação de bispos, mas que para a Santa Sé são questões morais”.

O Cardeal Tong confirma que este é o principal obstáculo, mas diz que tem visto “sinais positivos”, nomeadamente com o fim da nomeação de bispos não reconhecidos pelo Vaticano e a eleição de bispos – em vez de leigos do Partido Comunista Chinês – para a liderança da Associação Patriótica Católica Chinesa.

Ainda assim, “há sempre 20 a 30 vagas para bispos por preencher” no continente, diz Anthony Lam. O Vaticano já nomeou mais de 20 bispos chineses, mas o Governo Central apenas deu luz verde à consagração de cinco. “E mesmo assim foi um a um”, lamenta o académico.

Por um lado, explica, a Administração Estatal para Assuntos Religiosos desconfia que os bispos queiram disputar a gestão dos bens da Igreja Católica, muitos dos quais permanecem sob gestão estatal e têm rendido milhões aos oficiais chineses.

O investigador dá como um exemplo uma diocese na província de Hebei que em 1996 recebia apenas 40 mil renmimbis por ano pelas terras que detém em Tianjin, embora o rendimento desses bens atingisse os 2 milhões de renmimbis. Em 2006, Anthony Lam estimou em 130 mil milhões de renmimbis o valor dos terrenos e edifícios em disputa.

Por outro lado, acrescenta o académico, a China teme que os bispos contestem as medidas do governo. Por exemplo, diz ele, quando a política do filho único ainda estava em vigor, as autoridades “tinham muito medo que os bispos dissessem que o aborto era um pecado”.

Anthony Lam receia que para voltar ao continente, o Vaticano vai ter de aceitar “não criticar o governo e não interferir na esfera política”. Isso não significa, acredita Steve Bevans, “que a Igreja seja muda no que toca aos direitos humanos”. O Cardeal Tong está otimista e diz que um retomar de relações traria “maior respeito e liberdade”, não apenas para a Igreja Católica, mas também para os fiéis. 

USJ ainda à espera

Na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), o impacto das relações complicadas entre a Santa Sé e Pequim tem-se feito notar, sobretudo na Universidade de São José (USJ), gerida pela Diocese de Macau. Desde 2008 que a USJ tem demonstrado interesse em abrir as portas a alunos do continente, mas sem qualquer sucesso, com a China a escudar-se no estatuto não-público da instituição católica.

“A USJ não está autorizada a recrutar estudantes da China continental,” confirma o Reitor Peter Stilwell. “Esta tem sido uma política consistente durante, pelo menos, os últimos seis anos,” acrescenta o Reitor.

E não há qualquer luz ao fundo do túnel. “Não temos informação sobre qualquer desenvolvimento, positivo ou negativo, no que toca a este assunto”, sublinha Peter Stilwell, antigo vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa.

Católicos em queda na China

Em 2016, Anthony Lam estimou que havia 10,5 milhões de católicos na China continental, menos 1,5 milhões do que há uma década atrás. O investigador do Holy Spirit Study Centre, que se dedica a estudar a Igreja no continente, diz que o número anual de batismos tem rondado os 20 mil, muito longe dos 210 mil que seriam necessários para manter o número de fiéis.

O Cardeal John Tong confirma que tem havido uma queda no reduto tradicional do Catolicismo nas aldeias, com a mudança dos jovens para as cidades. Isso cria um problema para a igreja, diz Anthony Lam, pois muitas das celebrações são feitas nos dialetos locais, que os migrantes não entendem.

Além disso, acrescenta o académico, o governo ainda olha com desconfiança a crença católica, uma desvantagem para aqueles com ambições no partido ou na administração pública. No mês passado, por exemplo, membros da Liga da Juventude Comunista na Universidade do Sul da China foram obrigados a assinar um código de conduta que os proíbe de participar em atividades relacionadas com o Natal.

Para o Cardeal Tong, a solução passa por “tornar a liturgia mais compreensível e aceitável para a população local” e por “incorporar a cultura local na doutrina da igreja, desde que não haja contradições”. Ele acredita que um maior conhecimento da religião católica poderá ajudar as autoridades a perceberem que os fiéis “também amam o seu país”.

Vítor Quintã  19.01.2018

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