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A guerra não declarada

 

Henrique Botequilha

 Numa manhã de céu cinzento, todo um país se juntou na cidade da Beira, centro de Moçambique, para se despedir de Jaime Gonçalves, falecido a 6 de abril, reconhecendo o papel essencial do arcebispo emérito e mediador católico nos acordos de Roma, em 1992, que encerraram 16 anos de uma das guerras mais sangrentas do continente africano

Do chefe de Estado, Filipe Nyusi, aos representantes dos maiores partidos moçambicanos, líderes religiosos e académicos, todos quiseram prestar a última homenagem ao ex-arcebispo da Beira, tido como o “herói da reconciliação”, quando o país ameaça resvalar para uma nova guerra.

A palavra paz andou de boca em boca naquela cerimónia fúnebre transmitida em direto por um canal de televisão privado, enfatizada em todos os discursos e declarações à imprensa, sinalizando a intranquilidade com uma crise instalada e que deixou em sofrimento Jaime Gonçalves nos últimos meses da sua vida, quando acusava os políticos de promoverem uma democracia de ódio.

“Estão todos os dias enchendo a boca a dizer paz, paz, paz! Qual paz? Paz de vergonha? Onde está a paz?”, questionou num evento da Universidade Católica, em setembro, que juntou na Beira, pela primeira vez em mais de duas décadas, os signatários do Acordo Geral de Paz, o ex-Presidente Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, líder da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana).

Escoltas, emboscadas e refugiados

Onde está a paz? No dia em que o histórico arcebispo emérito da Beira foi a sepultar, a 9 de abril, chegaram à mesma cidade relatos do homicídio de um dirigente da Renamo e de mais bombardeamentos não confirmados na serra da Gorongosa, província de Sofala, onde se encontra refugiado desde o final do ano passado Afonso Dhlakama, que faltou à despedida do prelado, alegando falta de segurança. 

É desse tipo de relatos que se tem feito a atualidade política nos últimos meses no centro de Moçambique, para onde as Forças de Defesa e Segurança fizeram deslocar um amplo dispositivo militar, ao mesmo tempo que, em dois troços na província de Sofala da N1, a principal estrada do país, a circulação automóvel só é possível mediante escoltas dos blindados do exército e da polícia. Ainda assim atacadas.

Desconhece-se o número de mortos e feridos dos ataques atribuídos pelas autoridades ao braço armado da Renamo, desde que o movimento anunciou controlos militares nas principais estradas do centro país. O maior partido de oposição justifica a sua reação com alegadas perseguições, raptos e homicídios dos seus membros.

A Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), partido no poder, acusa, por sua vez, a Renamo de fazer justamente o mesmo.

Além dos incidentes nas estradas e das emboscadas a autocarros de transporte público, sob o argumento de que estão a ser usados para deslocar soldados do Governo, há registos de agressões militares nos territórios tradicionalmente Renamo do mapa do conflito e com pelo menos duas consequências conhecidas: 11 mil refugiados da província de Tete no vizinho Maláui e 36 mil estudantes sem aulas na Zambézia por falta de segurança.

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Bandidos armados’ e ‘comunistas’

Na origem desta nova crise está a recusa da Renamo em aceitar o resultado das eleições gerais de 2014, alegando fraude, e a sua exigência de governar as seis províncias no centro e norte do país onde reivindica vitória, através de um modelo de autarquias provinciais e de uma alteração da Constituição, prontamente rejeitados pela maioria da Frelimo no parlamento. Esses chumbos, avisaram os deputados da oposição, podiam empurrar o país para uma nova guerra.

A crise agravou-se quando, em setembro do ano passado, a comitiva de Afonso Dhlakama sofreu duas emboscadas, na província de Manica, a segunda das quais com elevadas baixas entre a sua guarda pessoal. Embora os dois incidentes continuem por esclarecer, o líder da Renamo concluiu que foi alvo de duas tentativas de assassínio, determinando o seu primeiro retorno para a Gorongosa, um bastião da oposição.

Quando, no mês seguinte, saiu do seu refúgio, acompanhado por mediadores políticos moçambicanos e jornalistas, mal chegou à cidade da Beira, a sua residência foi cercada e invadida pela polícia, numa alegada operação de recolha de armas em posse da guarda da Renamo. E voltou para a Gorongosa de novo… entretanto convertida em cenário de elevado aparato militar.

O crescendo da crise foi também acompanhado pelo aumento da agressividade verbal, ressuscitando-se a terminologia da guerra civil como “bandidos armados” e “terroristas” para apontar os homens da Renamo ou “comunistas de Maputo” quando se trata da Frelimo.

Dhlakama insiste que vai governar nas províncias de Niassa, Nampula, Tete, Manica, Zambézia e Sofala, embora já tenha expirado o prazo de 31 de março que ele próprio se impusera para o fazer, argumentando que o processo se atrasou devido a uma grande ofensiva militar e à atuação de supostos esquadrões da morte para eliminar dirigentes da oposição.

O Governo acusa, por seu lado, a Renamo de conservar armas ilegalmente, desafiando os homens da oposição para se integrarem nas Forças de Defesa e Segurança. Este é dos pontos de discórdia que se mantêm mais de duas décadas após os acordos de paz. Roma. E, enquanto dirige reiterados convites a Dhlakama para regressar à mesa das negociações, até aqui sempre recusados,o executivo mantém em paralelo uma intensificação das ações militares.

“Se não há outra maneira [de travar as ações armadas da Renamo], se a Renamo deixasse de disparar contra a população, não haveria necessidade de se proteger a população, porque não haveria fogo”, disse Joaquim Chissano, em entrevista ao semanário Savana, justificando a atuação das Forças de Defesa e Segurança e recordando que, mesmo nos dois anos de negociações de Roma, o conflito nunca parou.

Paz armada

Em 2013, a Renamo já tinha bloqueado a circulação rodoviária no troço Save-Muxúnguè (Sofala), junto à N1, após o assalto à residência do seu líder na Gorongosa e que o levou a manter-se quase dois anos escondido no que se convencionou chamar “a parte incerta”.

Com o fantasma do conflito bem recente, a guerra, independentemente da sua intensidade, permanece uma palavra a evitar e convertida em eufemismos como “tensão político-militar”. O próprio entendimento que Dhlakama e o ex-Presidente Armando Guebuza celebraram em setembro de 2014 e que permitiu a realização das eleições no mês seguinte ficou, por sua vez, eternizado como “Acordo de Cessação das Hostilidades Militares”.

O braço armado da oposição é reduzido à mera expressão de “homens residuais da Renamo”, e os efetivos das Forças Armadas e Defesa de Moçambique depreciativamente tratados como “fademos”, numa crise que, em vez de guerra, também é conhecida como “paz armada”.

Além de uma guerra não declarada, as forças políticas dominantes vivem ainda uma crise de confiança, em que até a retoma do diálogo, ainda como possibilidade, é ela própria vítima de posições inconciliáveis, com a Renamo a exigir a mediação da África do Sul, União Europeia e Igreja Católica, e o Presidente da República defendendo que não pode haver pré-condições.

Quando a economia moçambicana enfrenta um choque externo e uma seca sem precedentes nas regiões centro e sul do país, ambas com elevado impacto na disponibilidade de bens e subida do custo de vida, a única crise que o país podia controlar parece não ter solução à vista. E, mais uma vez, as palavras do arcebispo emérito foram replicadas bem alto na hora da sua morte.

“Os nossos políticos não se podem encontrar para discutir os problemas da nação. Não conseguem encontrar-se, não conseguem falar”, lamentou Jaime Gonçalves. “Podemos tocar todos os batuques de Moçambique ao mesmo tempo e ninguém ouve”.   

 

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