Há um novo rumor na cidade: vai haver sangue. Quer-se com isto dizer que um juiz no Palácio da Praia Grande, secundado por uma série de nomes da sua confiança pessoal na Secretaria para a Segurança; na Procuradoria, no Ministério Público, no Tribunal de Última Instância, no Comissariado Contra a Corrupção, no Comissariado para a Auditoria… servirão para completar a senda justicialista iniciada com a reversão dos terrenos para a RAEM; e a perseguição ao submundo do Jogo. Em breve se verá se é mito urbano, simples medo de quem tem razões para o ter; ou uma nova verdade política.
Talvez faça sentido no perfil de Sam Hou Fai – e sua rede pessoal – quiçá esse receio de uns, e esperança de outros, caiba mesmo na História recente do combate à fuga de capitais vindos da China, escoada sabe-se lá para onde. A tese – ou mito – também é compatível com a tese política chinesa de “governar com a Lei”; e certamente com a necessidade que a Administração tem de investir na diversificação económica, na Grande Baía, nas relações lusófonas, no bem-estar social, na redistribuição da riqueza… Porque há mais dinheiro do que aquele que chega aos cofres do Estado – muito mais. E esse é o segredo mais mal guardado de um paraíso de Jogo que ao longo dos anos se transformou num inferno ideológico para quem acredita no comunismo; e na própria paralisia de uma sociedade que se distraiu com o PIB milionário de poucos, mas que não foi capaz de moldar um rendimento per capita mais justo e humanista.
A aplicação da Justiça é sempre bem-vinda. E, se vier, o que a sociedade civil deve exigir é que não haja politização da justiça, nem justicialismo da política
Quando o caderninho de Ao Man Long foi guardado, a sete chaves, muitos se perguntaram onde estavam os corruptores do governante condenado. Pois se recebia de todos os que faziam alguma coisa; quem tudo fez tudo terá feito para poder fazer – presume-se. Mas muito depois disso, quando avançaram outras condenações em tribunal, o próprio Sam Hou Fai terá levantado a lebre, em circuito fechado, sobre as certidões extraídas em vários processos e que não tiveram a consequente investigação por parte do Ministério Público. Pode Sam Hou Fai fazer alguma coisa sobre isso? Pode. Porque a separação de poderes, em Macau, não inclui a mesma separação de poderes que formata a inspiração portuguesa. Aliás, não é por acaso que tomam todos posse ao mesmo tempo, no mesmo palco, e ao mesmo nível – secretários e os mais altos postos do sistema de Justiça. Se alguém tem medo, é bom que tenha. Haja ou não este movimento, quem não deve não teme; e quem deve, deve mesmo temer. Faz parte dos mais básicos preceitos da justiça e da harmonia social. Já agora, também é bom que quem tenha razão contra o Estado mereça dos tribunais a garantia desse direito. O que também não tem sido bem verdade.
Veremos em breve quais são os nomes que sobem ao palco, as relações que têm, as teses que defendem, os discursos que vão proferir, e a prática com que vão atuar. A aplicação da Justiça é sempre bem-vinda. E, se vier, o que a sociedade civil deve exigir é que não haja politização da justiça, nem justicialismo da política. Agora, é bem verdade que uma jurisdição que produz tanta riqueza, mas deixa esbanjar os recursos infindos por dedos escondidos na sombra, permite uma crise social alavancada pela especulação imobiliária descabida, e injusta para o cidadão comum; promove monopólios inconcebíveis no rentismo de Estado; inflação irracional e perda geral do nível de vida.
Sam Hou Fai foi claro ao assumir que, se for preciso, recorre à reserva financeira para investir no futuro. Mas, antes disso, terá de ter a certeza que os fundos estatais serão aplicados naquilo que faz sentido, e não no sentido que fazem a quem os consiga açambarcar. Seja porque motivo for; seja a sua teia de interesses tecida na Região, ou no Continente. Esse é o seu principal papel. Contudo, o regime também precisa perceber que a justiça deve ser feita pela Justiça, nos seus timings e nos seus termos. Veremos se o novo ciclo também percebe isso. E o que a Justiça percebe do novo ciclo.
*Diretor-Geral do PLATAFORMA