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“Lealdade” na Função Pública vista como normal

Há quem se diga preocupado - até pressionado - com o juramento e deveres de lealdade inscritos na proposta de alteração do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (ETAP). Contudo, juristas contactados pelo PLATAFORMA desdramatizam. Porque não há nada de novo, que não constasse do Código Penal e da Lei de Segurança Nacional; e até está mais explícito. Há outros artigos polémicos, mas desses não se fala: “Quando estás preocupado com uma coisa não vês as outras mais preocupantes”, atira um jurista da Administração

Paulo Rego

“É obrigatoriamente aplicada a pena de demissão” ao funcionário público que falhe no dever de lealdade à RAEM; ou na defesa da ordem constitucional da RPC, lê-se na proposta de alteração do ETAP entregue à Assembleia Legislativa. A polémica subiu de tom quando o secretário para a Administração e Justiça, André Cheong, admitiu que até comentários nas redes sociais – ou no café – influenciariam a avaliação desse dever. A verdade é que, escalpelizando a letra do novo estatuto, juristas consultados pelo PLATAFORMA desdramatizam um texto que aceitam como normal; que segue princípios gerais e valores que já constam do Código Penal ou na Lei de Segurança Nacional.

O dever de lealdade já obrigava os funcionários públicos (art. 279.º n.º 2 al. d do ETAP); por outro; e até no setor privado há esse compromisso (art. 11.º n.º 1 al. 5 da Lei das Relações de Trabalho), frisa o advogado José Álvares, concluindo: “Aquilo que se pretendeu, por um lado, foi expressamente incluir matérias relativas às leis da segurança do Estado – muito em voga, em qualquer parte do mundo, atendendo às tensões geopolíticas – mas igualmente dar com maior precisão em que consiste esse dever de lealdade. Repare-se que o secretário para a Administração veio precisamente esclarecer que não é qualquer acto que implica a violação do dever de lealdade; mas sim actos praticados com má-fé que visem denegrir, caluniando ou ultrajando, o sistema político consagrado na Constituição da RPC e na Lei Básica”.

Não é qualquer acto que implica a violação do dever de lealdade; mas sim actos praticados com má-fé que visem denegrir, caluniando ou ultrajando, o sistema político consagrado na Constituição da RPC e na Lei Básica

José Álvares, advogado

Outros problemas

Outro jurista, funcionário público, comenta sob anonimato: “Sinceramente, não vejo qualquer problema no juramento”; e também não “no respeito pela soberania e segurança do Estado”. Aliás, “princípios gerais e valores que já existiam no Código Penal e na Lei de Segurança Nacional”. Agora com a vantagem de estarem “mais explícitos; o que é bom. Mais complicado, por exemplo, é quando na Lei de Segurança Nacional se menciona o atentar contra a economia e o bem-estar do povo chinês – e nada se descreve”.

Entretanto, lembra o mesmo jurista, há na proposta de alteração do ETAP artigos “quiçá mais complicados, e nos quais ninguém fala”. Por exemplo, o artigo 39, onde se prevê processos disciplinares publicados em Boletim Oficial antes de serem concluídos; ou seja, “sem respeito pela presunção de inocência”; ou o artigo 102, que permite juntas médicas a entrar pela casa dentro de um funcionário para verificar atestados médicos.

Mais complicado, por exemplo, é quando na Lei de Segurança Nacional se menciona o atentar contra a economia e o bem-estar do povo chinês – e nada se descreve

Jurista da Administração

Na verdade, a questão proposta como central não preocupa este jurista, embora admita dúvidas sobre a Comissão a quem compete depois avaliar esses deveres; bem como os critérios que seguirá: “Resta saber a margem para a liberdade de opinião, discordância de procedimentos e de políticas… mas o que se vê são princípios gerais, ainda por cima relativos a questões que não passam pelo dia a dia de nenhum funcionário público”.

José Álvares recorda Nova Iorque, onde também se presta juramento, pela Constituição do estado, e do país. Em Macau, o objetivo parece-lhe ser o de “reforçar junto dos funcionários públicos esse dever de lealdade”. Se pensarmos no Governo como uma empresa, propõe Álvares, “se um trabalhador nem sequer tem fé na visão e missão do empregador, será que este o quer a trabalhar para si? Não creio que qualquer empregador tivesse resposta afirmativa. Primeiro, se uma pessoa nem sequer aceita o sistema político, nem devia estar a contribuir para esse sistema; segundo, a sua prestação, decisivamente, não será a mais produtiva”.

O mote da segurança nacional é questão essencial entre os dirigentes chineses. Há que reforçar este aspeto, sob todos os quadrantes, não se podendo menosprezar o importante pilar da Função Pública.

Jorge Fão, presidente da APOMAC

Admitindo que estas requisições possam causar “algum alarme”, Álvares sustenta que importa é reter a essência: “Uma pessoa que tenha uma crítica em boa fé nunca seria acusada de falta de lealdade; o que está em causa são atuações verdadeiramente contra o sistema”. É verdade que um funcionário fica numa “posição difícil se não assinar o juramento”; não tem é motivo para isso. “Nada mais se trata que reforçar obrigações já existentes”, conclui José Álvares.

Sem pressão

A Associação dos Trabalhadores da Função Pública (ATFPM) passou ao lado do debate; e o seu presidente, Pereira Coutinho, também não respondeu ao repto do nosso jornal. Jorge Fão, que hoje representa os pensionistas reformados (APOMAC), foi líder da ATFPM, razão pela qual frisa o silêncio que se houve da parte dos mais diretamente interessados: “Os assumidos representantes dos funcionários públicos não mostraram, até à data, qualquer objeção quanto à nova exigência de manifestação de fidelidade (…) A isto corresponde dizer que ninguém sentiu qualquer tipo de pressão quanto ao novo texto do juramento”.

Por outro lado, lembra Fão, nos tempos do Estatuto do Funcionário Ultramarino, “também tinham que apresentar várias declarações – uma das quais muito controversa”. Os tempos são hoje outros; e Fão contata que neles se inscreve “o mote da segurança nacional” como “questão essencial entre os dirigentes chineses”. Por isso aceita que “há que reforçar este aspeto, sob todos os quadrantes, não se podendo menosprezar o importante pilar da Função Pública”. Neste contexto, “compreende-se que um bom número de países considere importante a questão de fidelidade no seio dos seus funcionários públicos”, conclui Jorge Fão, não vendo nenhuma estratégia política nebulosa; mas antes o propósito claro de se “transmitir, com mais rigor, aos funcionários que trabalham na RAEM, a necessidade de ser fiel à RAEM e à RPC – nada mais”.

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