Kamala Harris entrou tarde em cena. Contudo, fez tudo bem, desde o primeiro dia em que apareceu. Primeiro, chegou a parecer que os democratas não teriam tempo de reação depois, a baixa popularidade da vice-presidente norte-americana expunha Biden à responsabilidade de um último erro, ao tê-la endossado como favorita para combater Donald Trump. Mas, afinal, em meia dúzia de dias Kamala virou a campanha do avesso, puxando o tapete ao favoritismo que Trump começava a assumir. O interesse de Pequim muda também de figura, porque a hipótese de Tim Walz na vice-presidência permite sonhar com outra comunicação entre a Casa Branca e o Palácio do Povo.
Kamala garantiu o acesso aos mais de 200 milhões de dólares em donativos da campanha; reuniu rapidamente consensos no partido; fez o pleno nos apoios das suas figuras de proa – casal Obama incluído – e passou Trump nas sondagens… Sem tempo para respirar, Kamala volta agora a surpreender com a sua escolha para a vice-presidente: Tim Walz, governador de Minnesota, é um político progressista, fala mandarim, e já visitou a China 30 vezes. Garante, sempre que é abordado sobre o tema, que as relações com Pequim “não têm de ser de conflito”.
Ora aí está uma voz absolutamente relevante no discurso norte-americano; até porque chega em contraciclo com a narrativa das últimas décadas. De Bush filho, passando por Barack Obama; depois por Trump, e acabando em Biden, nunca mais a China encontrou em Washington quem tivesse a visão de Bill Clinton: preferia controlar a China de perto do que tê-la de costas voltadas.
Para homens como Walz – e hoje há poucos na Casa Branca – a China é uma potência com quem “é preciso dialogar”; não é o inimigo que lidera o “eixo do mal”
Nas vésperas de Biden ter desistido da corrida presidencial, escrevi nestas páginas que, sendo o candidato republicano um problema anunciado, errático e imprevisível, Pequim estaria apesar de tudo interessada na derrota de Biden. Primeiro, porque a relação entre Xi Jinping e Biden parece a todos os níveis irrecuperável; depois, porque a Europa liberal e moderada tenderia a virar costas a Trump, reaproximando-se do oriente. Mas tudo muda com Tim Walz.
Esperava-se que Kamala escolhesse um homem branco, já com uma certa idade, capaz de seduzir o eleitorado mais conservador e atlantista. Seria esse, teoricamente, o perfil ideal para equilibrar o ticket de Harris: mulher, negra e progressista. Mas Kamala volta a surpreender. Porque, sendo o homem branco e experiente, que todos esperavam; Walz nada tem de conservador nem de atlantista radical. É antes um progressista, em termos ideológicos; e um multilateralista, em termos estratégicos. Para homens como Walz – e hoje há poucos na Casa Branca – a China é uma potência com quem “é preciso dialogar”; não é o inimigo que lidera o “eixo do mal”.
Muita coisa pode por isso mudar, se Kamala Harris cumprir com sucesso esta inesperada cavalgada, que poucos admitiam ainda possível. Nunca uma mulher tomou posse na Casa Branca, muito menos uma mulher negra, e progressista. “Radical de esquerda”, na boca de que Trump. O que, não sendo de todo verdade, revela bem o susto que assaltou o quartel general republicano. É cada vez mais evidente que, afinal, Kamala tem energia eleitoral – a pior notícia que Trump podia enfrentar.
Para quem assiste às eleições norte-americanas, a partir de Macau, Tim Walz é a notícia; e certamente já fez muita gente pensar em Pequim. Porque pode estar aqui a sorte grande, o termo a este ambiente tóxico que se arrasta entre as duas maiores potências do mundo.
*Diretor-Geral do PLATAFORMA