A tese está no ar: Macau tem a oportunidade de apostar numa estratégia análoga àquela que, há 25 anos, alavancou o “milagre irlandês”. A taxa fiscal fixa – 12 por cento ao ano – parece suficiente para que multinacionais consolidem aqui as suas contas. Outras vantagens haverá, mas também há bloqueios… e a realidade comprova-o. Afinal, nada disso está a acontecer. O Blue card – visto de trabalho em vigor – é definitivamente um problema, como são a escassez de acordos de não dupla tributação, a falta de promoção internacional ou as dificuldades em explicar na Europa as oportunidades que se abrem na Grande Baía.
No debate que no auditório do Consulado de Portugal juntou Carlos Cid Álvares, presidente do Banco Nacional Ultramarino (BNU) e da delegação de Macau da Câmara de Comércio Luso-Chinesa; Ana Morais, especialista em direito fiscal na sociedade de advogados MdME, em Lisboa; Bernardo Pinho, delegado do AICEP em Macau; e Stephanie U, em representação do Instituto para a Promoção do Investimento em Macau (IPIM), ficou claro que a hipótese existe: Macau pode competir como destino fiscal. Mas também é óbvio que há ainda um longo a caminho a percorrer. Ana Morais sintetiza a questão: apesar de existir um acordo de não dupla tributação com Macau, “essencial nestes casos”, a maioria dos seus clientes continua a dar prioridade a outros destinos: “Geralmente pedem-me para comparar as vantagens entre Hong Kong e Singapura”.
Carlos Cid Álvares é hoje um paladino da estratégia fiscal. Tem “uma visão para Macau”, na expressão de José Carlos Matias, diretor da Macau Business e moderador da sessão. A tese é a de afirmar internacionalmente a RAEM como destino fiscal. Até porque, “numa área tão competitiva, já cá estão reunidas a maior parte das condições necessárias”, defende Carlos Cid Álvares, elencando-as: “Acordos de não dupla tributação, em especial com Portugal, sensação de segurança, nível de vida, escolas e universidades, capacidade de inovação, plataforma lusófona, porta para a Grande Baía, etc”. Do ponto de vista das opções políticas, diz, é uma área que, “claramente, contribui para a diversificação económica; cria empregos; e, sabendo que o Governo enfrenta uma quebra de receitas na área do jogo, é também uma forma de compensar a receita fiscal”.
Sedução fiscal
Quando damos estas sugestões, fazemo-lo porque amamos Macau e queremos ajudar. É óbvio que o Governo tem a legitimidade de tomar decisões; e nós estamos cá para cumprir a Lei Carlos
Cid Álvares, presidente do Banco Nacional Ultramarino
Na Europa, o Luxemburgo é um exemplo de competitividade fiscal; a Irlanda, em 25 anos produziu um salto quântico no PIB; e a Holanda, menos agressiva nas isenções fiscais, é onde boa parte das grandes empresas portuguesas consolidam as suas contas. Já no sudeste asiático, Hong Kong e Singapura continuam na frente da corrida. “É preciso ser competitivo e perceber quais são os fatores decisivos” para atrair as multinacionais a sediarem em Macau as suas holdings, aponta Carlos Cid Álvares, claro e direto na crítica ao Blue card. Pelo menos na forma como hoje o visto de trabalho é frágil nos direitos que oferece e na falta de segurança que afasta massa crítica. No fundo, a dificuldade em atrair talento estrangeiro afasta o grande capital. Em tom de brincadeira, Carlos Cid Álvares diz que “o Blue card tem de ser mais green”. Querendo significar que, na sua versão atual, o visto de trabalho “é pouco sedutor” e “pouco competitivo”. Consciente da sensibilidade que o tema hoje suscita no debate político, o presidente do BNU remata: “Quando damos estas sugestões, fazemo-lo porque amamos Macau e queremos ajudar. É óbvio que o Governo tem a legitimidade de tomar decisões; e nós estamos cá para cumprir a Lei”.
Ana Morais centrou a sua intervenção na competitividade fiscal, evitando questões como o nível de vida ou o ambiente laboral. A sua experiência diz-lhe que os acordos de não dupla tributação são essenciais para que Macau se afirme como um hub regional onde as multinacionais queiram sediar as suas holdings. Sendo o número de acordos ainda escasso (apenas sete) “é preciso alargar essa rede”. Contudo, ressalva, isso implica “negociações complexas; que levam tempo”. Razão pela qual, nesta fase, “resta-nos explorar as vantagens que já existem, por exemplo, no acordo com Portugal”. Por outro lado, sugere, “se Macau quer mesmo seguir esta estratégia, pode – e deve – alterar a Lei. É sempre possível criar isenções fiscais específicas (…) mesmo quando o capital provém de países com os quais não há esses acordos”.
Certo é que, mesmo em relação a Hong Kong, Macau tem vantagens: antes demais, o vizinho do outro lado do Delta “está na black list” de Portugal; ou seja, é uma jurisdição offshore; o que desde logo “garante vantagens a Macau” quando se trata de “investimento que passa por aqui com destino a Portugal”.
Limite institucional
Se Macau quer mesmo seguir esta estratégia, pode – e deve – alterar a Lei. É sempre possível criar isenções fiscais específicas com vantagens competitivas
Ana Morais, especialista em direito fiscal da MdME
Bernardo Pinho, delegado do AICEP em Macau, estava numa posição institucional mais delicada. Afinal, o debate sobre as vantagens que as empresas portuguesas possam ter em pagar impostos a Macau não pode ser a sua prioridade institucional. Ainda assim, esclareceu que, estando focado em “atrair investimento para Portugal”, cabe-lhe também “explicar às empresas portuguesas as oportunidades de investimento e o hub regional que Macau representa”. Posto isso, frisa, “cabe a cada empresa tomar as suas decisões”.
Stephanie U, representante do IPIM, assumiu a “especial relação de Macau com Portugal”, no âmbito das suas funções de atração do investimento estrangeiro, no contexto “Um País, Dois Sistemas”. E embora se tenha permitido sorrir e a abanar discretamente a cabeça, como que a reconhecer as dificuldades que os vistos de trabalho causam nesse esforço, foi naturalmente defensiva: “Como membro de uma instituição governamental não me compete fazer comentários nessa área”.