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Como está o português em Macau?

Há cada vez maior interesse da população de Macau em falar português. Ao mesmo tempo, cada vez menos portugueses no território e um menor uso do português na esfera pública e privada. Segundo vários intervenientes bilingues ouvidos pelo PLATAFORMA, o contexto sociocultural é essencial para a concretizar a ponte com os Países de Língua Portuguesa. Por outro lado, apontam um desequilíbrio entre a crescente oferta e pouca procura por pessoal competente nas duas línguas

Guilherme Rego

A língua portuguesa continua a ser, a par do chinês, uma das línguas oficiais de Macau. No entanto, são muitos os desafios que a sua preservação e até desenvolvimento enfrentam nos próximos anos. Há cada vez menos portugueses no território, sendo este um cenário que, para já, se vislumbra difícil de contornar.

Há, efetivamente, um aumento da população com ascendência portuguesa (+0,4 por cento) entre 2011 e 2021. Mesmo assim, representam apenas 1,4 por cento da população. De nacionalidade portuguesa, há mais 3.791 pessoas face a 2011.

No entanto, a população nascida em Portugal caminha em sentido contrário: de 0,4 por cento passaram a representar 0,3 por cento da população, o que representa quase 3.000 pessoas. Estima-se que a saída dos portugueses tenha aumentado mais ainda com a manutenção da política zero de Covid até ao início de 2023.

Miguel de Senna Fernandes, advogado e presidente da Associação dos Macaenses, repara que “nunca houve tanto discurso do Governo para promover a língua portuguesa” e que isso, naturalmente, tem se refletido num “incremento de pessoas inscritas nos cursos de português”.

Contudo, separa as águas. “Há uma diferença entre a promoção da língua e a sua implementação prática no dia a dia. Eu não vejo essa implementação e é preciso criar esses contextos”. Por isso, Senna de Fernandes pergunta ao Governo: “O que é que se quer verdadeiramente da língua portuguesa?”. Em segundo, “para ser a plataforma sino-lusófona, basta o mero conhecimento superficial da língua?”.

O responsável aplaude a iniciativa e a vontade das autoridades, mas salienta que é “preciso alinhar a estratégia com o objetivo” que, a seu ver, “passa por efetivamente usar a língua”.

Escolas portuguesas como prova

A composição estudantil das escolas que ensinam português em Macau é prova dos dois lados da moeda. Há cada vez menos alunos portugueses, mas a verdade é que essas vagas estão a ser preenchidas por alunos de língua portuguesa não materna. No caso da Escola Portuguesa de Macau, até terá de expandir as instalações para responder à procura, agora que estes estudantes já compõem “acima dos 40 por cento” do corpo estudantil, segundo o presidente, José Manuel Machado.

No Jardim de Infância D. José Costa Nunes, estes alunos já “representam muito mais de 50 por cento”, afirma Miguel de Senna Fernandes, também presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses, que gere as instalações.

Hemorragia na Função Pública

Também na Função Pública se nota a perda do português. Saíram 316 funcionários entre 2021 e 2022, sendo que a grande maioria dominava a língua portuguesa (264), segundo a Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública (SAFP).

No total, 9.170 funcionários públicos falam português, ou seja, cerca de 29 por cento – uma quebra de 2,8 por cento face ao ano de 2021.

Por outro lado, os bilingues chinês-português (oral) totalizaram 8.824, contra 9.060 em 2021 – menos 236 ou 2,6 por cento. Os escreventes de chinês e de língua portuguesa ainda menos (8.764), uma quebra de 217 pessoas ou 2,4 por cento em relação a 2021.

O PLATAFORMA perguntou aos serviços se há preocupação em repôr estes postos de trabalho, mas não teve resposta até ao fecho da edição.

O que é que se quer verdadeiramente da língua portuguesa? […] para ser a plataforma sino-lusófona, basta o mero conhecimento superficial da língua?

Miguel Senna Fernandes, Presidente da
Associação dos Macaense

Rita Santos, presidente da Assembleia Geral da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM), diz que têm “lutado pela necessidade de dar prioridade aos candidatos que dominam as duas línguas oficiais para que nos serviços públicos a língua portuguesa possa ser respeitada e elevada em termos de utilização, tanto a nível interno como a nível externo”. A seu ver, os serviços públicos não têm sido eficazes na comunicação em português, notando erros frequentes e até a sua ausência em determinados serviços. A responsável diz ser “necessário contratar funcionários que tenham bom conhecimento da língua portuguesa” e sugere que se dê “prioridade” a estes profissionais nos cargos de dirigentes e chefias.

Défices do mercado bilingue

Mesmo assim, a ideia com que se fica é que o mercado laboral, público ou privado, não procura tanto os talentos bilingues, ou pelo menos aqueles que são tradutores-intérpretes.

Leonel Guerra é um jovem professor bilingue. Na sua opinião, o domínio das duas línguas oficiais “é uma ferramenta que ajuda”, mas não dá garantias em Macau. “As pessoas que aprendem português ou tradução chinês-português vão ter uma vantagem no mercado laboral. No entanto, essa licenciatura nem sempre é relevante no trabalho. Tenho seis colegas que estudaram tradução comigo. Hoje, apenas um está a trabalhar na área da tradução”, explica.

A razão? “A tradução precisa de um alto nível de compreensão das duas línguas, o que não é suficiente para começar a praticar apenas no ensino superior”.

Por outro lado, pede-se mais que o domínio das línguas. Na Universidade São José, o curso de Estudos de Tradução Português-Chinês, que por sinal é pós-laboral, “interessa maioritariamente a alunos de segunda licenciatura que já se encontram empregados e pretendem adicionar novas competências (…) ou, eventualmente, mudar de emprego para trabalhar no Governo de Macau”, diz ao jornal Tania Ribeiro Marques, coordenadora do departamento de línguas e cultura da instituição.

Há exatamente um ano, estavam inscritos 1.279 profissionais na base de dados de talentos bilingues chinês-português de Macau, sendo que mais de metade estavam inscritos como tradutores. Dos profissionais bilingues, apenas 6,94 por cento residiam em Macau. “Existe uma falta de talentos bilingues chinês-português em várias áreas profissionais. Apesar de o Governo dar muita importância ao seu desenvolvimento”, disse na altura ao nosso jornal Ma Io Fong, membro da Assembleia Legislativa.

Os dados, na sua opinião, comprovavam duas coisas: “A indústria de Macau não é suficientemente diversificada para absorver talentos relevantes” e que “a natureza monolítica e não localizada da nossa força profissional bilingue, a longo prazo, não será propícia ao desenvolvimento da plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa (PLP).”

Um ano depois, a situação melhorou. Há mais 635 talentos bilingues registados na plataforma, e 7,68 por cento residem em Macau (+0,74 por cento). Aqueles inscritos como apenas tradutores também desceram um ponto percentual.

“Parece-me que o Governo tem compreendido a necessidade de diversificar o desenvolvimento de talentos bilíngues no território, sendo que, recentemente, temos visto novos programas de subsídios lançados pelas autoridades, destinados aos alunos que estudam em Portugal, e que começaram a abranger novas áreas, como tecnologia e ciência”, diz Dinis Chan, membro da Associação Portuguesa de Tradutor (APT) e da Associação de Profissionais de Tradução e de Interpretação em Portugal (APTRAD).

Talentos em excesso?

A verdade é que Macau está a recusar talentos bilingues do exterior. Ao PLATAFORMA, são duas residentes do interior da China que confirmam a recusa de autorização de residência por haver pessoal com as mesmas qualificações a nível doméstico.

Viviana Chan, jornalista com qualificações académicas de tradutora chinês–português, é uma delas. Em 2018, altura em que trabalhava no Tribuna de Macau, deu início ao pedido, junto do Instituto de Promoção do Comércio e Investimento de Macau (IPIM). Em 2021, veio a resposta. Entre as várias justificações para a recusa, a audiência escrita refere: “Não tem muita experiência no exercício da profissão”; “não consta documentos comprovativos da sua qualificação”; e “não consta certificados, títulos honoríficos, ou medalhas de mérito”.

“Quando fiz o pedido, já tinha sete anos de experiência. Quando submeteram a resposta já tinha 10. Entreguei os documentos que comprovavam as minhas qualificações de ensino superior como tradutora-intérprete chinês-português, juntamente com dois ou três prémios de reportagem da Fundação Oriente”.

Porém, isso não foi suficiente. Na resposta, lê-se também: “À procura de trabalho com qualificações idênticas estão 19, dos quais pelo menos 12 candidatos procuram o mesmo tipo de trabalho.” A autoridade indicou que entre 2014-2015 e 2018-2019 registavam um total de 734 graduados na área de tradução chinês-português.

Outro caso é de um docente que trabalha numa instituição de ensino superior em Macau há seis anos, com ‘blue card’.

A língua portuguesa parece estar-se a reduzir a uma mera formalidade, em vez de ser algo de utilidade material ou substancial

Dinis Chan

O PLATAFORMA aceitou o anonimato do entrevistado por ainda pertencer aos quadros. Licenciou-se em Estudos Portugueses na Universidade de Macau, fez mestrado na Universidade de Lisboa e está agora a finalizar a tese de doutoramento na mesma universidade portuguesa. Submeteu o pedido de fixação de residente ao IPIM em 2018 e a recusa veio em… 2023. O professor queixa-se de que, durante os cinco anos, o IPIM nunca lhe solicitou documentos adicionais para justificar a sua qualidade.

“A meu ver, talentos bilingues de chinês e português já não se enquadram no âmbito de talentos procurados pela RAEM. Foram definidos quatro setores mais importantes no novo regime”. O docente refere-se às quatro indústrias emergentes para alcançar a diversificação económica: big health; finanças modernas; tecnologias de ponta; e convenções, exposições e comércio.

Cultura “ao nível da língua”

Leonel Guerra afirma que “a promoção da cultura portuguesa na escola ainda está ao nível da língua”. “Quando aprendi português, não aprendi nada sobre a cultura dos outros Países de Língua Portuguesa, mas essa matéria constava no livro!”, destaca.

Dinis Chan considera isso uma falha que a redução da comunidade portuguesa só agrava. “O contato regular e a interação próxima com a comunidade-alvo são fundamentais e essenciais para a aprendizagem de qualquer língua, e, certamente, a familiarização com essa mesma cultura são elementos nucleares desse processo”.

Do ponto de vista pragmático, não é possível dominar completamente uma língua sem conhecer a sua cultura”.

“Absolutamente impossível”, reage Miguel de Senna Fernandes, acrescentando que, portanto, “tem de se criar um contexto sociocultural” propício à implementação do uso da língua e de formação dos quadros bilingues.

Futuro do português

“A língua portuguesa parece estar-se a reduzir a uma mera formalidade, em vez de ser algo de utilidade material ou substancial. Mesmo que a administração local tenha vontade de a promover, o resultado final sempre dependerá da dinâmica social em que estão inseridas essas iniciativas”, sublinha Dinis, alertando para as consequências que isso traz a nível das relações com os PLP. “Macau tem uma vantagem inata devido aos seus laços histórico-políticos com Portugal, porém, com o tempo, essa história pode se diluir e fragilizar se não nos esforçarmos para a preservar, especialmente com o surgimento de novos jogadores em cena”.

Rita Santos, também presidente do Conselho Regional da Ásia e Oceânia das Comunidades Portuguesas, pede “maior divulgação da língua portuguesa como língua oficial da RAEM, para que os pais sintam que os filhos, aprendendo português, possam ter melhor futuro para a concretização do papel de plataforma de serviços da RAEM entre a China e os Países de Língua Portuguesa”.

Miguel de Senna Fernandes diz que para cumprir a agenda “vai demorar tempo”, mas que pode demorar mais ainda caso a estratégia se mantenha inalterada, apontando para a contínua criação de cursos. “Será que há poucos cursos de português? Acho que o problema não é esse. Parece-me que se a ideia é ir além do conhecimento geral, o plano tem de ser adaptado a essa realidade.” Nesse sentido, o responsável afirma que se deve delinear um plano faseado e transparente da implementação da língua portuguesa em Macau.

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