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Campeões do mundo, ao menos isso

João MeloJoão Melo*

As duas selecções lusófonas, recheadas de talento e esperança caíram nos oitavos de final do Mundial. Ao Brasil falta maturidade, capacidade de sofrer… Acabei de escrever isto e sorri, vou emendar: à selecção do Brasil falta a capacidade de sofrer. A semana passada três habituais titulares acompanhados do ex jogador Ronaldo “fenômeno” foram linchados nas redes sociais após terem publicado fotos num restaurante do Qatar onde comiam carne folheada a ouro. Mais tarde, em entrevista, o tal “fenômeno” rebateu as críticas dizendo que o consumo do prato “não tem nada de errado e inclusive pode ser inspirador para outras pessoas”… É verdade, no mínimo inspirou-as a soltar os cães. Em traços grossos poderia dizer que um dos maiores problemas do Brasil é ser uma sociedade temente a Deus com gostos hedonistas, em traços mais finos diria que o pobre anónimo que enriquece e se torna centro das atenções quer desfrutar das vantagens da ribalta sem pagar o preço das desvantagens, uma tendência muito ao género americano, jovem, irresponsável, sem amarras. Cada um deveria fazer o que lhe apetecesse com o seu dinheiro só que, gostem ou não, os jogadores nas selecções são embaixadores do seu país e hoje vive-se sob permanente escrutínio, ou seja, no mínimo durante o campeonato não podem propriamente fazer o que lhes apetece com o seu dinheiro. Como têm origem em meios de parcos recursos não sabem justificar o acto, se estivessem do lado do público criticariam igual. No fundo os jogadores fizeram isso porque… podem, tal como a maioria do público com os mesmos antecedentes faria se pudesse. Várias reportagens brasileiras falam do prato como tendo “mais glamour que sabor”, o que indicia um sistema mental semelhante ao dos linchados, a diferença é que estão na trincheira oposta: desculpem, “glamour”? No Qatar ninguém liga a isso e os que eventualmente liguem e critiquem estão debaixo da areia, é uma questão cultural para a qual o “fenômeno” perdeu a sensibilidade quando passou a frequentar o clube dos ricos cosmopolitas. Talvez agora ele e os outros tenham aprendido que os ocidentais podem fazer o que quiserem desde que seja pela calada, mas duvido, o pobre não resiste a exibir que já não é…

A pobreza não se circunscreve ao Brasil, no mundo do futebol e salvo raras excepções a origem dos actores é humilde ou remediada. O que torna o Brasil particularmente notado é o volume de matéria-prima entre uma população de 209 milhões de habitantes, a importância que dão a este desporto, a paixão com que o vivem, a alegria, a irreverência e o talento para a bola. Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística “o Brasil tem 13,5 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza; somadas aos que estão na linha da pobreza, chegam a 25% da população do país. As características e a distribuição da população nestas situações chamam a atenção. Os pretos e pardos correspondem a 72,7% dos que estão em situação de pobreza ou extrema pobreza – são 38,1 milhões de pessoas. De entre aqueles em condição de extrema pobreza, as mulheres pretas ou pardas compõem o maior contingente: 27,2 milhões de pessoas. Vale destacar que o rendimento per capita médio de pretos ou pardos é metade do recebido pelos brancos”. Apesar das inúmeras variantes a considerar, torna-se difícil para mim dissociar estes dados dos fenómenos da religião e do futebol. Imagine-se a tremenda dor dos brasileiros a viver nestas condições que põem todas as fichas do escape à realidade no futebol ou na religião… A eliminação do Brasil é praticamente uma traição divina. Mas como Deus não trai, então foram os jogadores que o fizeram, e actos como comer bife folheado a ouro (a versão moderna da adoração ao bezerro de ouro), desdém pelo valor dos adversários (o pecado do orgulho), “dancinhas ridículas” (que são engraçadas quando se ganha, vexatórias quando se perde), destrato para com os animais (um elemento do staff atirou rudemente para o chão um gato que surgiu numa CI) são traições às suas origens humildes, as mesmas do povão que aguardava espelhar-se neles e devido a eles acabaram punidos pela ira de Deus. É por isso que os povos em geral e particularmente os do futebol são tão obcecados com a humildade, o jogador de futebol é um de nós que ascendeu na escada social, não deve esquecer os que ficaram cá em baixo porque representam modelos que nos fazem acreditar na possibilidade de também “sermos alguém”. Já os brasileiros de berço não tão modesto, iguais aos de outros países, esperam competência em campo, nada mais. Na verdade a derrota aos pés da Croácia será talvez apenas sorte e azar sustentados em incompetência técnica mas vá-se lá explicar isto aos que se fiam em crendices? O Brasil tem uma brutal desproporção entre técnicos qualificados e a qualidade dos seus jogadores, porém este é um assunto complexo para outra publicação.

A Argentina passou sobre a Hol… Países Baixos. Da Argentina nem comento, todos conhecem o estilo, mas muitos não têm noção de que os jogos da Holanda podem dar porrada de três em pipa, lembro em especial algumas batalhas campais connosco e Espanha. Foi pois muito ajuizado da parte da FIFA nomear um árbitro espanhol para esse jogo que previsivelmente acabou à batatada e com queixas à arbitragem de ambas as partes…

No dia seguinte disputou-se um jogo entre as selecções de Portugal e Marrocos, em simultâneo com outro onde uma nação de 10 milhões de habitantes que transporta no peito um escudo sobre uma cruz defrontou uma nação de 450 milhões de árabes, no seu território; a confirmação veio do estádio: a percentagem de posse de bola de Portugal correspondeu à percentagem de som de assobiadelas, inclusivamente durante o hino, portanto 73% do tempo de jogo teve esta banda sonora. Não exijam nobreza a humildes eivados de esperança em derrotar inimigos. Ao cabo de 6 minutos de carrossel de bola igual ao de Espanha há um canto a favor de Marrocos, um “g’anda mameluco” sobe ao terceiro andar e cabeceia para fora enquanto a defesa portuguesa ficou no rés-do-chão, logo este vosso escriba cimentou a convicção de que seria assim que Marrocos marcaria. Sem surpresa aos 42 minutos Marrocos marca desta forma, desde o tal canto a música repetira-se em numerosos ensaios, e aí percebi que o jogo estava perdido. Não é pessimismo, quem gosta de futebol viu que Marrocos estava a ser superior em tudo, o filme da derrocada espanhola repetia-se à nossa frente. Mesmo sem ter frequentado altos estudos militares até um leigo como eu vislumbrava o magnífico arranjo táctico do treinador marroquino. Eles pareciam robots a saltar, julgo que em todo o jogo não ganhámos um lance no ar, pelo chão dava ideia de estarem 200 em campo e disciplinados, em bolas paradas cada marroquino constituía-se num tijolo perfeitamente alinhado para formar um muro, uma parede viva, que imagem assustadora. Depois do aviso de Espanha seria crucial esmagar quanto antes, abanar-lhes a confiança senão os robozões ganhá-la-iam ao longo do tempo enquanto drenariam a nossa. Nicles, sucedeu um remake da fita anterior: como um remoinho num ralo fomos arrastados para o cano de esgoto sem estrebuchar. Falamos de gigantes toscos? Muito pelo contrário, fiquei aliás com a impressão de Marrocos se constituir por 11 imitações de Ronaldo, em jovem, claro, o molde para atleta mais apreciado no planeta. Aos 50 minutos o Ronaldo verdadeiro, o velho que nos restou, prepara-se para entrar e aposto que 9 milhões 999 mil 950 portugueses perceberam que o jogo estava perdido (os 50 que faltam são da família do Ronaldo que pensa o contrário). De todo um hipotético repertório de soluções para mudar a sorte do desafio, Santos saca da sua faceta religiosa e apresenta a proposta final sobre como conseguir o empate: apelando ao sobrenatural, apostando no santinho de pés de barro. Pensem comigo: decidir-se por Ronaldo não significava apenas que o “número 1 do mundo” vinha para pôr a sua assinatura no caixão de Portugal? Fogo, não estou a laborar à posteriori, isto foi o que espontaneamente afirmei no momento. A opção significava a resignação do treinador, como quem diz “não tenho mais soluções”, e nem escondeu, cuspiu-nos a verdade na cara. Na antevisão do jogo o técnico marroquino lançara o isco afirmando que se Ronaldo jogasse de início seria mais difícil, vejam só a esperteza do mouro; não pegou, mas quando viu Santos preparar-se para disparar o bacamarte no próprio pé, imagino o quanto se terá rido… À posteriori cogitei mais cinicamente: talvez Ronaldo tenha entrado pela incapacidade do treinador apresentar um antídoto e então, perdido por cem, perdido por mil. Contrariando a narrativa de que está tudo bem no seio da selecção, Santos mostrou o lado triste, azedo, negativo que perpassou por toda a campanha: já que o menino se queixa de não jogar, “então entra lá ó Ronaldo e faz aí um truque qualquer”; obviamente o mundo sabe que a magia do capitão se esgotou há muito, pô-lo a jogar constituiu uma forma de o treinador alijar responsabilidade ao mesmo tempo que se vingava pessoalmente e em nome dos que estão chateados com ele, porque quem tem bom senso sabe que nestas circunstâncias Ronaldo se imolaria na sua própria incapacidade. Escrevo isto antes de ouvir declarações de Santos porém suspeito que dirá ter tentado tudo, faltou uma ponta de sorte, colocou todos os avançados que pôde “repare, só deixei 3 defesas em campo, que mais poderia fazer?” A única coisa que isto significa é que o Sr. engenheiro, o espanhol belga, e o espanhol de Espanha, todos com exércitos mais capazes não conseguiram, pior o senhor que estava avisado, mas alguém conseguirá (julgo eu, sei lá, até a Croácia empatou)… Isto tem o seu quê de comédia porque tal como em Alcácer Quibir este era um desastre anunciado. Bem, eu não sou adivinho, antes da partida o resultado era uma incógnita mas 10 minutos de jogo bastaram-me para intuir o desfecho. Temos muito melhores jogadores e tal como os brasileiros fomos mamados por ideias de jogo e de colectivo muito melhores. Se o fomos também por ideias extra-jogo, do género fabricar a final com este ou aquele, é algo que nem vou explorar; se houvesse competência em campo dificilmente medraria a hipótese. Direi apenas que os árbitros sul-americanos são fracos e não deveriam apitar jogos deste nível, especialmente quando selecções dos seus países têm interesses na competição; a nós calhou-nos duas vezes o mesmo argentino, é “azar”, os ingleses levaram com um brasileiro que parecia francês.

Apesar das distintas idiossincrasias e circunstâncias, tanto o Brasil como Portugal demonstraram a falta que faz ter um seleccionador com capacidade técnica e tesão de ganhar. E a sorte? Estou convencido que se tivéssemos os adversários que calharam ao outro seria mais fácil, a malta dos balcãs é maluca mas nós já estamos habituados, por outro lado Marrocos seria um aperitivo para o Brasil, juntamente com a Argentina, talvez as duas selecções mais naturalmente aptas vencê-los, já que com a França pode-se tornar numa batalha imprevisível. Imprevisível é tudo daqui para a frente, até se pode repetir na final um jogo do grupo F, Marrocos vs Croácia…

Pergunta o repórter a Neymar: “-o que retira da participação?” Resposta do astro: “-nada”. Ou seja, não estava preparado para perder, isto não foi uma lição, nem a tolera, o que significa que também não teria educação para ganhar, eventualmente haveria distúrbios e provocações, aquilo que sucederá no jogo da França contra Marrocos, mas provavelmente em qualquer outro, em qualquer rua de qualquer cidade de qualquer país do mundo. Querer é uma coisa, saber conseguir, lidando com isso ou o fracasso é outra. Na verdade ninguém está preparado para ganhar ou perder, o envolvimento emocional é tão descabido que o futebol fica sendo o escape de toda a frustração acumulada em cada um, em cada colectivo sob a mesma bandeira. Após quase cem anos de Mundiais unicamente 8 países se sagraram campeões, Portugal nunca chegou a uma final, atingiu duas vezes as meias, estamos com um seleccionador decrépito e um ex número um do mundo a arrastar-se em campo, todavia a popular do início do texto queria que Portugal fosse campeão do Mundo… ao menos isso! “Ao menos isso” será infantil, será demente? Não sei, esta frase reflecte incompreensão, confusão, desânimo, o nível de distorção da realidade que as pessoas atingem abastecidas pelo excesso de emoções e redundando numa ineficaz gestão de expectativas. Assistimos agora ao mesmo tipo de loucura que incendiará um conflito mundial, só que nessa altura canalizada para outro fim.

*Embaixador do PLATAFORMA

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