
Nas vésperas do novo ciclo de jogo, que jamais voltará aos loucos anos dourados, os números mostram claramente as consequências de uma transição, em certa medida, inesperada; sobretudo na forma e no timing.
Entre Janeiro e Outubro de 2022, o Governo de Macau arrecadou em impostos 29 mil milhões de patacas (36 por cento da despesa), tendo recorrido a 63.2 mil milhões da Reserva Financeira para aguentar as contas. Para quem produzia sete vezes a receita de Las Vegas… eis a dura realidade.
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Isto não é um plano de desenvolvimento económico.
É a bruta consequência de uma tempestade perfeita, que atravessa toda a China: o ataque sem precedentes ao modelo junket, e à fuga de capitais no Continente, é feito na sequência de um combate feroz às elites mais poderosas do Partido Comunista e do regime; em plena retração económica que resulta da política de Covid-zero; e durante uma transição política inédita em Pequim.
De Xi para Xi, a passagem é marcada por uma fortíssima componente ideológica que, pelo menos no curto prazo, retrai o investimento e a liberdade de circulação de capitais; paralelamente alimentado a demonização do regime chinês por parte do império norte-americano, que assume a China como a principal ameaça à hegemonia global.
É muita coisa junta…Talvez nem todas elas medidas na sua real extensão, sobretudo na circunstância de se sobreporem umas às outras, num espaço tão curto de tempo. Macau não poderia nunca escapar incólume ao ataque feito à corrupção e à fuga de capitais.
Era absolutamente incontornável limpar a “máquina de lavar”; não só por razões de política interna, mas também de controle dos seus efeitos externos.
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E impõe a verdade reconhecer que Pequim andou mais de uma década a avisar que o faria; repetindo até à exaustão o imperativo da diversificação económica; por via da integração regional e da plataforma lusófona. Toda a gente sabia; mas parecia boa ideia prolongar o estado de negação.
Agora vê-se que não correu bem…
Por muito que isso doa, não é intelectualmente honesto chorar lágrimas de crocodilo por um modelo de desenvolvimento que toda a gente sabia o que era… como se fosse possível advogar que era saudável, que promovia a autonomia, ou as liberdades… Isso não faz qualquer sentido.
O que de facto criou foi elites multibilionárias, hiperinflação entropias ao desenvolvimento sustentável e à diversificação económica…mas também a distribuição pouco saudável do PIB per capita.
O problema não é o fim do modelo; mas sim a evidência de que, neste momento, não estão no terreno modelos económicos alternativos, intercalares, complementares… o que mata a receita, retrai o investimento e a criação de emprego…minando o espírito do tempo.
É da responsabilidade de uma governação madura enquadrar tudo isto, no tempo e no espaço. O drama está longe de ser só em Macau.
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Do outro lado da fronteira, mesmo aqui ao lado, imagens que escapam ao controlo das redes sociais mostram tumultos, em Cantão, que impressionam pela sua dimensão e significado. São raras – não eram sequer supostas – e violentas: carros virados do avesso, fogo posto, desafio à polícia… e dura intervenção das forças especiais.
Há relatos de cenas semelhantes em Xangai, e noutras cidades… Nas redes sociais multiplicam-se denúncias de salários em atraso na função pública – em várias províncias – e limites ao levantamento das poupanças.
A banca acumula crédito mal parado dos governos provinciais – sobretudo no financiamento à construção – mas agora também nos em- préstimos à compra de casa… E os números oficiais assumem que as contas dos governos provinciais estão todas – ou quase – abaixo da linha vermelha.
As coisas não estão nada fáceis.
E o Governo Central dá vários sinais de que percebe o perigo potencial da insatisfação, respondendo com um controlo cada vez mais apertado a tudo o que se passa; e a todos os que representam tudo aquilo que entendem ser preciso evitar. Como aliás sempre acontece no Partido Comunista Chinês, sempre que sente ameaçada a estabilidade do poder.
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O dilema que o PC hoje vive, no curto e médio prazo; é saber o que fará mais mal a Macau, à China, ao próprio partido…
Se o drama da doença, ou a crise da cura.
*Diretor-Geral do PLATAFORMA