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China/Macau: Para quê mudar?

Catarina Brites SoaresCatarina Brites Soares

Governo entende ser absolutamente necessário alterar a legislação em vigor desde 2009 e defende que população está de acordo. Cerca de 93 por cento das opiniões recolhidas na consulta pública foram favoráveis. Para o Executivo o resultado comprova “o amor da população à pátria e a Macau”. Certo é que foram recolhidas cerca de seis mil opiniões numa população com mais de 680 mil, e que não é consensual entre analistas e juristas a necessidade – e utilidade – das mudanças. Fará sentido alterar uma lei que nunca foi aplicada?

O Executivo, liderado por Ho Iat Seng, entende que sim e justifica a revisão com a existência de ameaças “tradicionais e não tradicionais” à segurança do Estado. Até hoje a lei vigente nunca foi aplicada. O contexto importa. A cronologia dos factos também.

A iniciativa surgiu no rescaldo dos protestos que assolaram Hong Kong em 2019 e depois de Pequim ter imposto legislação sobre o tema na cidade vizinha, ainda que na Lei Básica esteja escrito que esta é uma competência da Região.

Desde então, e uma vez aprovada a lei da segurança nacional em Hong Kong, que conta com uma polícia própria, sucederam-se as detenções – que vão nas centenas -, de ativistas, políticos e académicos. A oposição calou-se e os protestos nas ruas desapareceram.

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Aqui, mais de 90 por cento concorda com a nova versão. Na consulta pública, que decorreu entre agosto e outubro, foram registadas seis mil opiniões. Macau tem mais de 680 mil habitantes.

O Executivo é categórico: “A segurança nacional é um pressuposto para a prática de direitos e liberdades dos residentes. A prevenção, a repressão e a punição dos atos contra a segurança do Estado, podem garantir de melhor forma os direitos e liberdades fundamentais dos residentes”. Especialistas divergem.

António Katchi não vê necessidade de mudar a legislação, muito menos urgência. Frederico Rato igual. Sonny Lo entende. E José Costa Álvares também.

“Não discordo que a legislação se mostra necessária face ao mundo atual”, defende o advogado.

“Diria que a interferência externa é sem dúvida uma preocupação legítima do Governo. Temos de ter em conta o princípio que rege a nossa existência de ‘Um País, Dois Sistemas’ e as ameaças geopolíticas que exigem a Macau uma atitude preventiva numa perspetiva de região que integra uma potência mundial”, argumenta Álvares.

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Sonny Lo explica que o intuito é corrigir lacunas. “E conferir mais poder e autoridade ao Governo para proteger a segurança nacional, que agora é definida de forma mais abrangente”, realça o académico de Hong Kong.

António Katchi questiona: “Qual a finalidade? Macau já dispõe de um quadro jurídico-penal imensamente abrangente”.

“As alterações só constituirão uma ameaça para os que cometerem atos que serão violações evidentes da segurança nacional”, Sonny Lo, analista político

E fundamenta: Código Penal, 350 artigos – que inclui “Crimes contra o Território”, com 54, e “Crimes contra o sistema político, económico e social”, com 11; Leis de Criminalidade Organizada, e de Prevenção e Repressão dos Crimes de Terrorismo; disposições penais relativas ao “ultraje” a símbolos nacionais ou regionais (como o artigo 13º da Lei n.o 5/1999); e Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado, que tipifica os ilícitos criminais do artigo 23º da Lei Básica.

Posto isto, constata: “É muita legislação”. Para o jurista, o Direito Criminal deve proteger apenas os bens jurídicos mais importantes, punir somente os comportamentos mais gravemente lesivos, e limitar ao indispensável as penas e medidas de segurança.

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Frederico Rato afirma que nada se passou em Macau que pudesse pôr em causa os valores da soberania, segurança e os interesses do desenvolvimento do Estado. “Violações à lei vigente?”, pergunta.

“Nenhuma”, responde. “Tal lei não foi violada uma só vez”, reitera. “Aumentaram os riscos? O comum dos residentes não se terá apercebido. Parece que Macau está a apanhar por tabela por coisas que não provocou e de que não necessitaria”, aponta.

“TERÁ RAZÃO? (…) BASTA OLHARMOS PARA MACAU”

Álvares sublinha que a maioria dos Estados tem legislação de segurança nacional. “O que é uma evidência de que a atitude do Governo de agir em prevenção é melhor do que em reação”, realça, com a ressalva: “Macau vive numa situação de bastante harmonia e paz, pelo que qualquer legislação que seja introduzida poderá revestir-se de apropriados ‘checks and balances’ que permitam evitar que a legislação se torne um obstáculo ao desenvolvimento saudável da sociedade”.

Katchi desconfia e recorda as afirmações de Wang Jianwei, professor da Universidade de Macau, numa entrevista ao Ponto Final.

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Quando questionado sobre se a futura lei poderia levar a população a “reprimir eventuais críticas ao Governo ou a Pequim”, o académico respondia: “Se forem críticas positivas e que permitam ao Governo desenvolver melhor o seu trabalho, acho que não haverá problema.

Mas se a intenção das críticas for tentar sabotar o regime…”. “A resposta pareceu-me bastante clarividente”, sublinha o jurista, que volta a indagar: “Terá ele razão?”.

Em Macau há liberdade de expressão, não é por enviarem uma mensagem crítica do Governo que vão acabar detidos, José Costa Álvares, advogado

Olhemos para Hong Kong, sugere. Pára e reformula.

“Pensando bem, nem sequer é preciso. Basta olharmos para o passado recente de Macau e recordarmos quem é que, em 2020 e 2021, foi considerado pela Polícia de Segurança Pública, pela Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa e pelo Tribunal de Última Instância como tendo participado ou tencionando participar em atividades destinadas à subversão dos sistemas políticos instituídos na República Popular da China e na RAEM”, lembra.

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“Quem foram? [Os democratas] Ng Kuoc Cheong, Au Kam San, Sulu Sou, Scott Chiang e até mesmo os milhares de anónimos que, de 1990 a 2019, participaram pacífica e ordeiramente nas vigílias do 4 de Junho no Largo do Senado”.

Sonny Lo tem outra visão. À pergunta sobre se a nova proposta respeita o Estado de Direito, responde que sim, pelo menos para a China. “De acordo com a perspetiva chinesa sim, as alterações estão em conformidade na medida em que a Justiça continuará a ter um papel.” Ainda que só alguns estejam aptos a julgar os casos de segurança nacional: os juízes chineses.

QUEM NÃO DEVE, NÃO TEME

“No que toca à revisão da lei, não queria entrar em pretensiosas elucubrações pseudo-filosóficas, mas a natureza desta problemática leva-nos ao verbo do início: nascer”, afirma Frederico Rato.

O Homem, acrescenta o jurista, nasceu igual e desenvolveu-se como ser livre e inteligente. Depois, continua, percebeu a vantagem gregária, que gerou a questão do poder.

“O maior, o chefe, o rei, o czar, o imperador, o presidente, o deus, a conduta, a norma, a lei, o direito, a ordem, a justiça, a rejeição, o louvor, o perdão, a submissão, a medalha, tudo a coberto da vontade social e de quem a exprime, de quem a lê, como se apura, de quem é quem”, avança, para frisar: “A questão não é a do Estado de Direito, mas a de quem elabora e assegura a vigência e o seu cumprimento”.

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A questão é a de sempre, diz. “Também universal. Quem tem o poder, donde lhe vem, como o exerce. Falamos da política e da condição humana, que é no que se resume a eterna questão do poder. É aqui que se encaixam as leis e as suas revisões, revogações, abrogações e repristinações”.

Neste enquadramento, defende, antes de ver se a lei é mais assim ou mais assado, importa analisar.

“Primeiro, a preocupação e a perspetiva de quem tem e exercita o poder, e segundo perceber o que uma lei desta natureza – pela redação, interpretação e aplicação – podsignificar na vida de qualquer cidadão consciente e participante na comunidade em que se integra e que serve, e daí retirar as conclusões”.

O Governo sossega os mais ansiosos. Numa das sessões da consulta pública, o secretário para a Segurança dizia: “Se não tiverem nada a esconder, não têm nada com que se preocupar”. Para Sonny Lo, Wong Sio Chak tem razão. “As alterações só constituirão uma ameaça para os que cometerem atos que serão violações evidentes da segurança nacional”, argumenta.

“A maioria da população de Macau respeita a autoridade dos governos regional e central, e portanto não há nada a temer”, assegura.

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Álvares também exclui perigos. “Em geral, tendo a concordar com a máxima, ‘quem não deve, não teme’. As pessoas tendem a reagir exageradamente às propostas, mas realmente se não tiverem praticado nenhum crime, pergunto-me qual o receio”, refere.

“Em Macau há liberdade de expressão, não é por enviarem uma mensagem crítica do Governo que vão acabar detidos. Digo mais, desde que as CCTV foram espalhadas pela cidade, Macau tornou-se uma cidade bastante mais segura”.

ALTERAÇÕES NOVAS DISPOSIÇÕES

• Os meios criminosos de secessão do Estado deixam de se limitar aos violentos ou outros ilícitos graves

• Prevê, de forma expressa, os atos concretos que visam a secessão do Estado e a destruição do seu carácter unitário

• O crime de subversão contra o Governo Central passa a chamar-se “subversão contra o poder político do Estado”

• Sugere-se que no atual crime de sedição seja acrescentado que é punível criminalmente quem, pública e diretamente, incite à prática do crime de rebelião que prejudique a estabilidade do Estado

• O crime de “subtração de segredo de Estado” passa a denominar-se de “violação de segredo de Estado”

• A revisão à lei prevê a punição de qualquer pessoa, mesmo estando no estrangeiro, que cometa crimes contra a segurança nacional da China

• Proposta pretende criar “medida preventiva de ‘intercepção de comunicação de informações’”, ou seja, aceder ao registo de comunicações dos últimos seis meses diretamente de operadores de telecomunicações e prestadores de serviços de comunicações em rede

• “Restrição temporária de saída de fronteiras”, o que permite que alguém seja detido sem ter sido constituído arguido

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