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Revelação

João MeloJoão Melo*

“Não me propus dar esperança. Não. Seria irrealista e injusto” – Wole Soyinka, escritor nigeriano Nobel da Literatura em entrevista ao jornal “Público”.

Imagine-se uma pessoa aparentemente saudável. Um dia nota sintomas estranhos, desculpa-os com o seu modo de vida, depois passam a incomodar tanto que a pessoa vai ao médico e acaba por descobrir ter um cancro que se desenvolveu em silêncio durante anos. Eis o estado actual do mundo. Estávamos melhor antes? Em caso afirmativo não seria porque desconhecíamos o mal ou preferimos negligenciá-lo? Só se é feliz num estado de ignorância? Para quem optou por postergar as consequências foi como ter comprado uma década de férias a troco de pagar hoje a totalidade dos custos, e com juros; para quem as desconhecia a revelação surge ao género de o rei vai nu de Anderson ou do Adão bíblico. É quando nos confrontamos com o mal que perdemos a inocência, e achem o que acharem sobre se a vida se suporta melhor com ilusões ou se não vale a pena tê-las, sempre virá um momento ao qual nem os inscientes escapam, pelo menos durante o julgamento ficarão a conhecer os factos. Sim, estamos em época de exames, tornou-se demasiado evidente para todos a justiça ser injusta, a saúde estar doente, a educação promover a deseducação, e malgrado o mundo produzir riqueza suficiente, os pobres estão mais pobres. Vive-se o caos, a confusão ou inversão de antigos valores.

Ao fim de meio ano de gaffes, episódios de incompetência e demissões percebe-se que o PS, um partido dito de “esquerda” afinal não foi premiado, foi castigado pelos eleitores porque não estava preparado para ter uma maioria absoluta, e como formou o governo que nos governa significa que nos punimos a nós mesmos; é patético porque sempre tivemos noção disto. Ao fim de mês e meio de ter tomado posse o governo dito de “direita” do Reino Unido caiu de podre. Nada de extraordinário, os governos são como a fruta do século XXI, duram 2 ou 3 dias, sabemos que estão inquinados pelo germe da rápida obsolescência e contudo resignamo-nos à falta de alternativas, no caso britânico consubstanciadas na desfaçatez de Boris Johnson em pretender regressar. Já que falo do Reino Unido, desde 2019 estou convencido que após Johnson iremos conhecer a verdadeira face da nova ordem que promoveu o Brexit, e Liz Truss terá sido afinal um aperitivo para tornar o próximo mais desejado, o messias salvador (avé Sunak?). Suécia e França, paladinos da retórica dos refugiados vão fechar em Novembro as fronteiras, no mínimo até Abril de 2023, alegando o aumento de ilegais e ameaças terroristas. Os governos moderados da Europa estão como castelos de areia à beira mar, esboroam-se a cada onda, as alternativas sólidas (diria com sangue na guelra) parecem vir dos extremistas, tem sido assim nos países do centro/leste, agora na Itália, mas também aposto que o governo de Giorgia Meloni que há dias tomou posse aparece amanhã com demissões, e antes do Natal já apodreceu.

No Brasil, um país cujo volume de riqueza de uma minoria é galáctico se comparado com a pobreza da maioria da população, o nível de demagogia da campanha presidencial assemelha-se à escolha de um líder para a Kidzania, e a violência dos ataques pessoais sugerem uma Kidzania da dark web: Bolsonaro acusou Lula de ser amigo de traficantes de droga, e Lula, numa baixeza capaz de fazer corar o próprio rei da baixaria (Bolsonaro), acusou-o de ser pedófilo! Na primeira volta houve um padre alegadamente da Igreja Ortodoxa (esta nega que o seja) que aceitou as regras do jogo político porém ao sentir-se atacado pelos adversários indignava-se exigindo mais respeito… por ser padre; as vestes com que se apresentava seriam assim uma espécie de capa de super-herói que o protege dos inimigos, quer dizer o que lhe apetece mas não quer ouvir. Para o bem e para o mal o Brasil soa infantil, crédulo e violento, tal e qual a ilha Coral da novela “O Deus das moscas”, uma remota ilha habitada só por crianças e desastrosamente governada por elas. Qualquer que seja o vencedor das eleições o drama social agravar-se-á porque a maioria da população continuará pobre e o único conforto virá das religiões evangélicas, um negócio em franco crescimento. A sua implantação é tão forte que Lula teve de levar a sério uma inacreditável acusação, vendo-se obrigado a declarar oficialmente que “não tem pacto nem jamais conversou com o diabo”; quem se inclinava a votar nele mas tinha receio do tal pacto já pode suspirar de alívio… Nem Bolsonaro, assumido evangélico, escapa da irracionalidade do fanatismo religioso depois de ter vazado um vídeo onde aparece a discursar num templo maçónico que católicos e evangélicos associam a Satanás. Hoje é raro o comum cidadão brasileiro falar seja do que for sem enfiar Deus ou Cristo na conversa. Num mundo à beira do abismo onde não há ponta de realidade por onde se pegue, quem não tem nada, nada tem a perder, agarra-se à palha que lhe fornece a expectativa de o manter à tona, e por este caminho de miséria associada à religião o Brasil arrisca a tornar-se num Estado Confessional ao género de muitos árabes. Certamente nunca se discutirão as mesmas questões que estão a provocar a convulsão social no Irão mas as diferenças são apenas culturais; sobrepondo a fé religiosa ou a demagogia política à razão, na essência o extremismo é igual em qualquer sítio. Como se constata nestes tempos o julgamento e a respectiva pena toca a todos, conscientes ou inconscientes, crentes ou ateus, democracias jovens ou maduras, de esquerda ou de direita. No Brasil nem se chega às franjas, é a própria sociedade que está partida ao meio e o poder disputa-se não por dois rivais mas dois arqui-inimigos ao género Marvel Comics.

Se amanhã fosse noticiado que o Papa Francisco na sua juventude vestira fardas nazis eu ficava triste mas não me surpreenderia. Vamos sendo inundados por notícias de abusos sexuais na Igreja, que Marcelo num momento infeliz de Lua cheia considerou ser um número baixo, e muitos católicos sentem a tentação de matar o mensageiro, os meios de comunicação social que atiram para a praça pública os casos de abusos e não mostram as perseguições de que a Igreja é alvo em várias partes do planeta. Claro que há quem aproveite as fragilidades alheias para se reforçar, é a lógica de poder e as religiões organizadas não fogem a ela, enquanto inimigos da cristandade e reformadores são enfiados no mesmo saco, uma atitude não muito diferente da era de crise do século XVI que originou o protestantismo: não há discussão sobre tons de cinzento, só se admite preto ou branco. Gostava de perceber onde os católicos incluirão o Papa que parece lutar por uma reforma, e que paradoxalmente se a levar tão longe quanto o necessário acaba a tornar-se no Gorbachev da Igreja Católica, desfaz tudo. Vendo de fora e sem fé nessa igreja (ou noutra qualquer), a queda para os abusos sexuais tem uma razão óbvia, a exigência do voto de castidade. Nenhum dos apóstolos era casto e não há provas de que Cristo também o fosse. O que se sabe é que ele foi contra um clero profissional, o próprio movimento reformador do judaísmo que iniciou baseava-se nesse pressuposto, entre outros. Porém o Vaticano tornou os sacerdotes diferentes do resto dos homens: especialmente eleitos por Deus. Nos primeiros séculos do cristianismo, a eucaristia, rito litúrgico basilar da fé cristã, podia ser presidida por qualquer crente, inclusivamente por mulheres. No último milénio a prática dos profissionais da Igreja com “afilhados” foi subsistindo; hoje é complicado, o mundo está repleto de juízos, holofotes e câmaras, exige-se um rigor consentâneo com o apregoado, e dado nenhum humano ser perfeito, os padres com mais “apetites” não resistem, pese embora o escrutínio existente. No fundo a Igreja encontra-se numa crise de identidade: se quiser recuperar o verdadeiro espírito de Cristo vê-se na contingência de renegar a uns 15 séculos de embustes e práticas corporativas que apodreceram o fruto original, desvirtuaram de tal forma o movimento em que se basearam que se tornaram no seu pior inimigo.

Falo da Igreja Católica porque é aquela com a qual estou mais familiarizado, mas todas as religiões têm práticas diferenciadas das normas inscritas nos textos sagrados que seguem, e quase todas as práticas se sobrepõem em autoridade às escrituras, o que no fundo nem critico, afinal não foram homens os que em primeira mão escreveram e escolheram os textos que integram os livros sagrados? Já os movimentos radicais de várias religiões (como alguns evangélicos no cristianismo) tendem a levar à letra o que se inscreve nas escrituras, com a perversa consequência de alienar ainda mais o espírito, produzindo multidões com um elevado estado de inconsciência, o estado onde conseguem ter algum sossego e encontrar sentido para a vida, uma vez que a sua realidade é incompreensível de tão má. Não sei o que é pior, se invocar a complexidade (periculosidade?) do texto, tendo que ser adaptado ao nosso cérebrozinho por especialistas, ou tomá-lo à letra; é que no último caso, pegando na tradição judaico-cristã, ainda não percebi muitas coisas como por exemplo as normas que Deus instituiu para os escravos. Há crentes cientes das inverdades da sua religião que escolhem acreditar, estão no seu direito, não estou a fazer juízos de valor; estou a dizer que para os não crentes as evidências apontam para nos encontrarmos numa época de consciencialização, em que somos permanentemente confrontados com erros passados.

Quanto aos crentes, os hindús que acreditam em ciclos cujo fim é marcado pela decadência moral da humanidade que se destruirá e ressurgirá, os judeus que não acreditam no Apocalipse mas numa redenção, os islâmicos que creem no “Dia da Ressurreição”, a avaliação final da humanidade por Alá que se dará numa época de “corrupção e caos”, e os cristãos que esperam o Apocalipse (que significa “revelação”), todos apontam para um estado de consciência, quer ele seja essencial para atingir uma nova Era de vida na Terra ou para sermos julgados por Deus; seres inconscientes não podem ser julgados, portanto a bem ou a mal toda a gente ganhará consciência, não vale a pena fingir ou fugir. A vantagem de a adquirir já é poder atacar o cancro quanto antes e com isso ter mais hipóteses de o vencer. Realisticamente a esperança da humanidade reside nisto portanto estarei sempre a favor de quem promove a consciência, e alerta com quem faz o contrário.

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