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“Guterres teve coragem ao dizer que russos violaram lei internacional”

José Victor da Silva Ângelo nasceu há 72 anos e já testemunhou o pior que o ser humano pode fazer. Estudou Sociologia em Évora e em Bruxelas, trabalhou no Instituto Nacional de Estatística e na Comissão Nacional de Eleições, mas dedicou mais de metade da vida de trabalho à Organização das Nações Unidas. Integrou diversas missões de paz, chefiou programas de desenvolvimento, foi o representante especial do secretário-geral das Nações Unidas Ban Ki-moon e, nessa qualidade, foi também aquilo a que se pode chamar um secretário-geral adjunto. Reformou-se da ONU há pouco mais de dez anos, é um observador atento do mundo, reflete sobre isso em diversas publicações e em grupos de reflexão, como o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, e elogia António Guterres.

Quem é que deveria ser o mediador das negociações entre a Rússia e a Ucrânia?

Gostava imenso de poder responder a essa pergunta porque, na realidade, a situação em que nos encontramos – que é uma situação extremamente grave e que se tem agravado de dia para dia -, precisa de uma mediação. Normalmente, o mediador deveria ser alguém nomeado pelo secretário-geral das Nações Unidas e que fosse aceite por ambas as partes. Mas, neste momento, não vejo essa possibilidade poder materializar-se. Não penso que seja possível por várias razões. Uma delas porque o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, é visto pela parte russa como estando muito próximo das posições ocidentais, nomeadamente das posições americanas, e, por outro lado, o próprio presidente da República da Rússia, Vladimir Putin, considera que o secretário-geral e o Secretariado das Nações Unidas são estruturas ao serviço dos Estados membros e não capazes de estar ao mesmo nível, em termos de facilitar uma mediação. Por isso, a hipótese mais recomendável seria encontrar um Estado membro das Nações Unidas que pudesse fazer essa mediação.

A China, por exemplo?

Falou-se da China, é verdade. Se me tivesse feito essa pergunta há dois ou três dias, diria que a China era, de facto, uma possibilidade. Simplesmente, nas últimas 24 horas, a posição chinesa tem-se radicalizado bastante no que diz respeito a ataques sucessivos aos interesses americanos na Europa e a aproveitar a crise que existe neste momento na Ucrânia para atacar os Estados Unidos. E, nesse caso, será muito difícil que os Estados Unidos aceitem a China como mediador. A China poderia ser um mediador possível se fosse aceite por ambas as partes, mas vejo muitas dificuldades nisso. A minha sugestão era que houvesse não só um país a fazer a mediação, mas que fosse um tandem de países, ou seja, a China e um outro país que não fosse nem europeu nem membro da NATO, mas que fosse aceite quer pelos russos quer pelos americanos e europeus. É nesta situação que nos encontramos, sobretudo tendo em conta que as negociações diretas entre a delegação russa e a delegação vinda de Kiev muito provavelmente não irão chegar a nenhuma conclusão. Por isso será, muito provavelmente, necessário preparar o terreno para que haja um acordo entre ambas as partes e esse preparar o terreno quer dizer trabalho de mediação.

Já afirmou que António Guterres é visto, neste momento, como alguém que quebrou a neutralidade. Num artigo do Diário de Notícias, logo muito em cima do início da guerra na Ucrânia, afirmou que Guterres teve uma frontalidade histórica como secretário-geral, erguendo a voz e criticando um dos países com direito de veto, algo praticamente inédito na história das Nações Unidas. Duas perguntas numa: por um lado, isso mostra a personalidade de António Guterres, que podemos aplaudir, por outro, dificulta esse tal papel mediador que poderia ter?

Exato. Sublinharia, primeiro, a coragem que António Guterres teve ao dizer claramente que o que os russos tinham feito era uma violação da lei internacional, atacava diretamente a soberania de um Estado membro das Nações Unidas e, por isso, era inaceitável. Penso que isso é, sobretudo, muito corajoso, até porque António Guterres estava a referir-se diretamente a um país que é membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como disse, e como escrevi nessa altura, de facto é inédito um secretário-geral ter a ousadia de dizer que um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança está a violar a lei internacional. É algo nunca visto na história das Nações Unidas. Por outro lado, é evidente que uma tomada de posição desse género incompatibiliza, imediatamente, o Estado membro referido por António Guterres e torna mais difícil o seu papel de mediador. Apesar de tudo, penso que António Guterres deveria nomear um representante especial para acompanhar o processo da Ucrânia e tentar também uma função de bons ofícios, de modo a facilitar a comunicação entre a Ucrânia e a Rússia, por um lado, e também a comunicação entre a Rússia e os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança, por outro, porque é fundamental que o diálogo volte a ser restabelecido. Neste momento, um grande problema que temos é que não há diálogo ao nível dos membros permanentes do Conselho de Segurança, e não havendo diálogo – mesmo que seja um diálogo de surdos -, é importante que haja diálogo, é importante que as pessoas se encontrem. E não havendo diálogo, é muito mais fácil chegar a uma situação de escalada permanente da crise.

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