António Félix Pontes acredita que a política de casos zero “revela-se de duvidosa racionalidade”, na medida em que os recursos financeiros não são ilimitados. No entanto, defende que Macau possui reservas financeiras suficientes para aguentar, durante oito anos, a subsidiação local em tempos de crise. Em declarações ao PLATAFORMA, o economista refere ainda que o crescimento económico da RAEM depende da China, especialmente se as fronteiras forem totalmente abertas.
– As recentes previsões vindas de Pequim apontam para um crescimento do PIB na ordem dos 6 por cento em 2021. Tendo em conta as dificuldades impostas pela pandemia, quais as valências e pontos fracos da economia chinesa atual?
António Félix Pontes – É um facto indesmentível que a economia chinesa foi a primeira a recuperar das consequências económicas derivadas da pandemia, seguida pela economia dos Estados Unidos da América. Enquanto se constata que, nos mercados emergentes e economias desenvolvidas, se está numa fase de recuperação prolongada devido a surtos repetidos de Covid-19 e ao progresso lento na vacinação, principalmente como resultado da distribuição muito desigual das vacinas entre os países… Na realidade, a economia chinesa tem vindo a normalizar-se no ano em curso, para o que tem contribuído a quase supressão efetiva da Covid-19, o retomar gradual do consumo interno quase aos níveis anteriores à pandemia como consequência direta da contínua recuperação do mercado de trabalho e da melhoria da confiança dos consumidores. Estas são, assim, as valências mais relevantes da atual economia chinesa, para além dos seus fatores estruturais que estão a permitir uma grande dinâmica dos agentes económicos.
A contrastar com esse cenário favorável, eclodiu a grave crise no setor imobiliário chinês, nomeadamente da Evergrande, que detém a maior dívida do mundo (300 mil milhões de dólares americanos, superior, por exemplo, à dívida do estado russo em 2020), tendo essa empresa imobiliária já entrado em situação de incumprimento perante os seus credores. Entretanto, outros grandes construtores chineses também se estão a deparar com falta de fundos para assumir os seus compromissos, pelo que, a curto prazo, deverão entrar em falência.
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A situação muito problemática nesse setor tem feito refrear os ânimos de potenciais compradores de habitações, ficando muitas centenas de milhares, talvez milhões de apartamentos por vender, sendo muito questionável a declaração do Banco Central da China que o impacto do iminente colapso desses gigantes imobiliários é controlável… e, mesmo que o seja, os custos económicos, financeiros e sociais resultantes de uma eventual reestruturação do setor em causa deverão atingir uma dimensão sem precedentes.
E, como essas entidades insolventes têm a maioria das suas dívidas nos bancos chineses, o impacto financeiro nestes poderá ser devastador.
Por conseguinte, os principais pontos fracos da economia da China são, atualmente, a derrocada do seu setor imobiliário e o seu inevitável efeito dominó no setor financeiro, para além da China se defrontar com desafios demográficos muito sérios – como ocorre em muitos países desenvolvidos – que representam um risco potencial para o desenvolvimento socioeconómico e a estabilidade do país.
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– Serão as previsões do Governo chinês demasiado otimistas ou haverá mesmo um crescimento económico este ano?
A.F.P. – No ano de 2021, em relação à economia chinesa (a segunda no ‘ranking’ mundial), temos taxas positivas para o Produto Interno Bruto (PIB) em todos os trimestres, mas com a tendência a ser claramente decrescente (18,3%, 7,9% e 4,9% para os primeiro, segundo e terceiro trimestres, respetivamente, em relação a iguais trimestres de 2020).
A taxa de crescimento relativa ao terceiro trimestre de 2021 (4,9%) representa o desempenho mais fraco desde o trimestre similar de 2020 (em que o PIB aumentou também 4,9%), tendo havido uma desaceleração de três pontos percentuais comparativamente ao trimestre anterior (7,9%), aumentando essa diferença para 13,4 pontos percentuais se fizermos a comparação com o primeiro trimestre de 2021 (18,3%).
No entanto, é importante notar que esta última taxa de crescimento, que é elevada, deve-se em grande medida à base de comparação bastante baixa respeitante ao primeiro trimestre de 2020, onde se sentiram sobremaneira os efeitos dos confinamentos e das perturbações na produção e distribuição de bens.
Como fatores contributivos para a evolução menos favorável no terceiro trimestre de 2021, teve-se a crise geral de energia que provocou uma série de apagões, os comportamentos aquém do esperado no consumo interno e na produção industrial, os surtos episódicos da Covid-19 que determinaram alguns confinamentos com todas as consequências negativas daí decorrentes e os já referidos problemas gravíssimos de liquidez com que se defronta um setor imobiliário com dívidas astronómicas.
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Quanto a projeções, o presidente do Banco Central da China afirmou em tempos que o PIB chinês vai crescer cerca de 8 por cento, estando assim em total sintonia com a previsão do ‘World Economic Outlook’ (WEO) de outubro deste ano e de projeções constantes de outros estudos. Já outras autoridades chinesas reduziram essa expetativa para 6 por cento, para o que deverá ter contribuído a desaceleração nos dois últimos trimestres de 2021.
No meu ponto de vista, embora se tenha registado uma nova desaceleração no último trimestre de 2021, há que ter em atenção a convergência de diversos fatores favoráveis a um bom crescimento económico no último trimestre de 2021.
Por um lado, a melhoria no nível de confiança dos consumidores e, por outro, o abrandamento da política de utilização de combustíveis fósseis e o aumento do investimento – que continuará a ser o ‘motor’ do crescimento da economia chinesa – antecipam um bom crescimento no quarto trimestre.
Daí que, na minha opinião, seja possível que o PIB da China registe um crescimento entre 6 a 8 por cento no ano corrente. Se me enganar, não deverá ser por muito, espero eu…
– Acredita que este progresso da economia chinesa influencie o crescimento económico da RAEM? Vê as duas economias a crescer em paralelo? Será que uma depende da outra?
A.F.P. – No que respeita à primeira pergunta, a resposta é afirmativa, embora os pilares em que assentam as duas economias sejam muito diferentes.
Na estrutura da economia de Macau o setor terciário detém a quota leonina que excede os 90 por cento, seguindo-se, a grande distância, o setor secundário com menos de 10 por cento e o setor primário que é insignificante (0,1%). Já na economia chinesa, tem-se um setor secundário muito extenso, um setor terciário claramente em ascensão e, ainda, um setor agrícola de grande dimensão que emprega cerca de 10 por cento da sua população ativa.
Qualquer progresso registado na economia da China conduzirá, por exemplo, a um aumento no rendimento dos seus cidadãos, os quais, mantendo-se a política de abertura para que se possam deslocar a Macau em viagens turísticas (estou já a pensar na fase de pós-pandemia em 2022) irão contribuir com os seus gastos no jogo, alojamento, refeições, compras, etc. Para a economia local, no passado, não foi pouco!
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Quanto ao crescimento das duas economias no ano de 2021 ser em paralelo, a resposta é sim em termos das duas irem crescer e não no que se refere ao ritmo de crescimento do PIB, na medida em que Macau deverá registar uma taxa muito superior, prevendo eu que seja um valor entre 28 a 30 por cento, enquanto que a taxa de crescimento do PIB da China, tal, como já disse anteriormente, deverá situar-se num intervalo de 6 a 8 por cento.
– Vê a política de casos zero como benéfica do ponto de vista económico? Que outros países ou regiões podem servir como exemplo na gestão pandémica ao mesmo tempo que tentam estabilizar a economia?
A.F.P. – A política de tolerância zero para a Covid-19, consubstanciada, fundamentalmente, no encerramento das fronteiras, nos confinamentos de locais onde tenham surgido alguns casos infetados e nas quarentenas obrigatórias, por vezes, por períodos absurdamente longos, causa instabilidade e insegurança aos agentes económicos, refletindo-se num impacto muito negativo para a economia.
O estabelecimento dessa política justificava-se plenamente no início da pandemia pelo desconhecimento que então se tinha do vírus. Mas no momento atual, a sua aplicação revela-se de duvidosa racionalidade e a médio e longo prazos é insustentável!
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Por outras palavras, sendo a mesma efetiva no curto prazo, a sua continuidade deve ser objeto de ponderação, tendo em atenção as perturbações e os danos colaterais de relevo que provoca na atividade económica, tendo os Governos de despender milhões e milhões de fundos sem retorno para subsidiar os seus cidadãos e empresas. E os recursos financeiros não são ilimitados, embora, no caso de Macau, as reservas permitam que o Governo local tenha margem para continuar a apoiar financeiramente os seus residentes e agentes económicos durante sete a oito anos numa situação prolongada de crise.
Para além do que refiro sobre a impossibilidade de se continuar sem prazo com essa política, a realidade mostra que os vírus não se erradicam, continuam entre nós, como os vírus da varíola, da gripe, da hepatite, do sarampo, entre outros, sendo os seus efeitos sanados ou diminuídos com medicamentos e (ou) com vacinas próprias. No caso da Covid-19, já há várias vacinas e é uma questão de alguns meses até ao aparecimento de um ou mais medicamentos que tratem dessa doença. É minha firme convicção que, no dia em que a China dispuser de medicamentos para o tratamento da Covid-19, a política de tolerância zero é abandonada e passa à história.
Na minha perspetiva e mesmo com o aparecimento recente da variante Ómicron, que parece mais contagiosa, mas menos gravosa, essa política deve ser revista. Mas antes os Governos devem concentrar-se no reforço de ações efetivas, ou seja, não-platónicas, tendentes a uma maior vacinação da população até se atingir, pelo menos, 85 por cento dos cidadãos vacinados.
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Ora, na China e em Macau a taxa de vacinação (duas doses) já excede 75 e 70 por cento, respetivamente, o que é francamente animador, embora nos grupos etários de idades mais avançadas, onde o risco é maior, os resultados deixam ainda muito a desejar.
Assim, creio que a política em apreço, embora funcione em termos de prevenção, a partir de determinado momento, como já afirmei, para além do seu impacto negativo na economia, tem outros efeitos perversos pois leva muitos cidadãos a não se vacinarem…
Quanto a países que desistiram de aplicar essa política e que podem servir de referência para Macau, sugiro que se analisem os casos de Singapura, Nova Zelândia e Austrália, tendo os respetivos Governos concluído pela insustentabilidade da mesma, nomeadamente pelas consequências desastrosas para as suas economias.
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