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Uma certa meia dúzia

João MeloJoão Melo*

Falácia de resoluções. O espaço da União Europeia representa um universo de 400 milhões de eleitores; nas eleições para o Parlamento Europeu em 2019 só metade exerceu o direito de voto. O Parlamento é composto por 705 deputados eleitos pelo método de Hondt, e aprova a legislação europeia, normalmente sob proposta da Comissão. A Comissão, que na verdade é o governo, não resulta de eleições mas de nomeações arranjadas entre os países membros. Não me lembro de alguma vez ter votado na Sra. Ursula von der Leyen para presidir aos destinos da Europa…

A legislação europeia que rege a política comum de 27 países associados num dos mais importantes blocos socio-económicos do mundo é chancelada (ou não) pelos 705 representantes de 200 milhões de eleitores. Portanto para eleições europeias estamos no fundo a votar em vigilantes das propostas da Comissão. A diversidade é linda mas perante questões que requerem uma resposta rápida e concertada vem à tona a debilidade de um sistema aquém da eficácia das potências rivais, aí a União Europeia parece uma torre de Babel.

Falácia de opções. Os Estados Unidos têm 240 milhões de eleitores. Nas últimas eleições presidenciais 158 milhões escolheram entre dois candidatos aquele que governará a por ora maior potência mundial. Dadas as características do país os americanos geralmente votam em uma de duas “caras” ou “personalidades”. Claro que há dois partidos por trás das caras mas regra geral o Congresso, composto por 535 membros desses representantes partidários eleitos pelo sistema “the winner takes it all”, chancela ou não as medidas presidenciais conforme a maioria seja do seu partido ou do rival. Tanta democracia e a escolha possível é como a do Sumol há 50 anos: laranja ou ananás. O presidente nomeia as figuras da administração, sendo esta particularmente sensível aos poderosos lobbies que se digladiam entre si; apoiando uns ganha a oposição acirrada de outros. A menos que declarem guerra a um inimigo exterior os Estados Unidos vivem quase sempre na iminência de uma fractura nacional.

Falácia de representações. A China, séria candidata a maior potência do mundo, tem uma população de 1,4 mil milhões de habitantes e é governada por um único partido. Possui uma Assembleia Nacional Popular composta por 2980 membros eleitos para mandatos de 5 anos que na prática pouco mais fazem que chancelar as decisões do Comité Permanente do Partido Comunista. A maior parte do poder do órgão é exercido pelo Comité Permanente do Congresso composto por 170 legisladores… Os membros da Assembleia podem vir e partir, quem legisla em permanência é um Comité de 170 pessoas.

O sistema mais eficaz é o de partido único, seguido do de dois partidos, e o menos eficaz é o de vários partidos. Pensem nisso quando se queixarem por os outros estarem melhor, o que ganham e o que perdem com o sistema em que vivem? Não estou a depreciar as virtudes da democracia ou a falta dela num país que talvez fosse ingovernável ou fragmentado se a tivesse, estou apenas a constatar que qualquer que seja o modelo que nos rege, o poder é exercido por uma ínfima parcela de pessoas, e tendencialmente é uma ínfima parcela de pessoas que lhes dá poder. É necessário marketing para o adquirir e ainda mais marketing para o manter.

Em Portugal a Câmara Municipal de Lisboa tem enorme importância no contexto nacional, lida com muitos interesses e milhões de euros, já forneceu um presidente da República bem como um primeiro-ministro. O actual presidente da câmara foi eleito por 83 000 cidadãos, 80 000 votaram no ex presidente. Imaginem um indivíduo que diz umas coisas para animar audiências, tipo eu, a concorrer como cabeça de lista por um partido à Câmara de Lisboa. Foi o que fez Nuno Graciano, auto intitulado “o tio careca”; o careca que encabeçou o Chega não caiu em graça, teve 10 000 votos, porém, em face do ridículo número de votantes, mais 5000 e hoje seria um vereador lá caído de pára-quedas… Nem vou falar dos concelhos do grupo ocidental dos Açores mas no concelho, atenção, concelho, de Alvito votaram 934 pessoas, e no de Barrancos 633! Qualquer caramelo que arregimente família e amigos residentes nesses locais arrisca-se a ser presidente de câmara.

O futebol ocupa em Portugal incontáveis horas de atenção mediática, movimenta paixões de milhões e interesses de variadas áreas da vida nacional, tudo se imiscui no futebol e este imiscui-se em tudo. André Ventura era comentador desportivo, secretários de Estado e um administrador de uma empresa pública foram acusados de recebimento indevido de vantagem por assistirem a um jogo da Selecção em Paris, o Primeiro Ministro e o presidente da câmara de Lisboa aceitaram pertencer à comissão de honra de Luís Filipe Vieira, um candidato entre outros à presidência de um clube, e por aí fora. Em 2017 pouco mais de 16 000 sócios reelegeram Bruno de Carvalho no Sporting; o país viveu intensamente as peripécias de uma personagem psicótica escolhida por somente 16 000 pessoas… Em 2018 10 500 votaram pela sua destituição pondo fim a um suplício mediático de meses. Luís Filipe Vieira foi presidente do Benfica durante 18 anos, gerindo movimentos de capitais no valor de milhares de milhões de euros. Em 2020 23 800 sócios reelegeram-no e este ano teve de ser o Ministério Público a provocar a sua destituição. 10 milhões de habitantes tiveram o quotidiano informativo recente condicionado pelas escolhas de 39 800 criaturas que chancelaram as agendas particulares de duas instituições desportivas. Em sindicatos, ordens profissionais, confederações e associações mais do mesmo: um pequeno número de pessoas organizadas à volta de um interesse pode ter um surpreendente impacto na sociedade.

A civilização apareceu há uns 100 séculos; nasceram, morreram deuses e impérios, inventou-se a república, a democracia, o feudalismo, o capitalismo, a Revolução Francesa, o comunismo, e ao fim deste tempo, quer os governantes imponham a sua vontade pela força ou representem democraticamente as populações, o poder de facto é negociado e exercido por uma meia dúzia de pessoas. Refiro-me unicamente aos que dão a cara porque esses amiúde servem outra meia dúzia que vive na sombra e ninguém sabe quem são.

Hoje, recheados de distracção e lazer poucos desejam o incómodo de intervir na governação, preferimos ser governados. A informação disponível inculcou-nos a noção de complexidade do mundo, fez-nos compreender que não temos capacidade para governarmos, isso fica ao critério de especialistas, chega-nos tomar conta da nossa vidinha, cumprir com os nossos direitos/deveres e acatar recomendações/ordens de expertos. Quem tem pachorra para votar porque acredita que o seu voto faz a diferença acaba igual a quem não votou, quase nunca faz diferença porque estruturalmente nada muda, só muda o que e quando as elites entendem. O poder do voto é uma ilusão alimentada nas democracias enquanto os pragmáticos chineses eliminaram essa maçadora farsa. Na realidade do dia-a-dia cá e lá parece não haver grandes diferenças de conteúdo, somente na forma: o ocidente vive num capitalismo liberal (desde que não se afronte a “liberalidade” dos mais poderosos), a China num capitalismo comunista. Assim, o voto que realmente interessa em todo o mundo é o like, esse é que dá dinheiro aos capitalistas, compila informação sobre perfis e tendências a serem exploradas. Ou seja, após uma centena de séculos o raio de acção das massas continua tão limitado como sempre foi, o que se alterou foi a escala e a tecnologia. É isto que alguns com ambição de ascender ao poder perceberam: se trilharem o caminho certo, se estiverem no sítio certo, à hora certa, deixarem-se manipular pela mão certa, possuirem o algoritmo certo e mexerem os cordéis certos, conforme a instituição onde estejam inseridos assim o seu grau de poder; não é necessário ser-se chancelado por milhões, basta sê-lo pela meia-dúzia certa.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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