A Galiza tem ligações ao Atlântico mais fortes do que à Meseta, ou deserto, numa alusão à capital política de Madrid, usada na Galiza. Esta parte do Estado Espanhol situa-se num enclave, por razões históricas que todos conhecemos, o que desde sempre contribui para algo que pode ser designado por “geografia separatista”, como refere Miguel-Anxo Murado.
Esta excentricidade relativamente ao centro político motivou uma espécie de xenofobia madrilena, da qual já Rosalía de Castro deu sinal num dos seus poemas. Sobre este território de “pobres e de poetas”, como diz Álvaro Cunqueiro, dizia‑se, até há bem pouco tempo, que se falava uma língua cómica e degenerada do castelhano. É precisamente o inverso. O galego é bem mais antigo que o castelhano.
Sem ligação à Meseta, a Galiza nunca esteve fechada sobre si própria. Por exemplo, o vínculo entre as duas margens do rio Minho sempre foi muito forte e continua a sê-lo. Basta lembrar a união entre presidentes de Câmara e dos alcaides aquando do encerramento das fronteiras minhotas nos confinamentos, durante a pandemia, na defesa do movimento pendular diário dos trabalhadores entre as duas margens.
Cunqueiro chamava ao galego a língua de pobres e de poetas, como já dissemos, evocando o proletariado, os camponeses, ou seja, o povo. A própria Rosalía de Castro ao escrever em galego ficava deste modo mais perto daqueles sobre quem escreve. Muitos dos poemas de Rosalia são agora canções tradicionais e em todas as casas há pelo menos um dos volumes dos seus poemas.
Hoje, a língua galega é tão relevante na Galiza que se celebra com o mesmo entusiasmo o Dia das Letras Galegas, dia da publicação do primeiro livro de poemas de Rosalía, que o Dia da Pátria Galega.
A literatura galega ganhou uma enorme vitalidade e agora é também uma língua intelectuais e académicos que usa o galego. No entanto, isso não esmorece o temor de que a omnipresença do castelhano a enfraqueça.
E esse temor é fundamentado. A recastilhazação intencional foi visível na apropriação dos topónimos, de que é exemplo a vila A Guarda, na foz do rio Minho, rebatizada durante muito tempo de “La Guardia”. A castelhanização da toponímia teve algumas traduções absurdas, como de Xanrozo, que significa generoso em galego, para Juan Rozo. As distorções permaneceriam nas estradas da Galiza como uma agressão fonética, durante 60 anos, como um desejo de reinventar o mapa da Galiza que, por sua vez, continuou indiferente e a usar os topónimos originais.
Sempre existiu um receio do desaparecimento da língua galega. Esse sentimento agravou-se nos anos setenta, com a emigração, a industrialização, a diferença geracional, a falta de liberdade política. Por outro lado, há a dificuldade real de firmar uma gramática e uma ortografia. Se uns defendem a manutenção da grafia castelhana, para outros, os reintegracionistas, a grafia tem de ser mais coerente com a origem do idioma e, de preferência, integrado na sua família luso-brasileira.
Há um conflito linguístico, sendo que, do ponto de vista da origem, outros ainda defendem que o português e galego são a mesma língua, ou, melhor dizendo, duas variantes do mesmo idioma. Se a mudança da capital de Guimarães para Lisboa, no início da nacionalidade, aproximou o idioma dos dialetos mais meridionais e mais afastados do galego, por outro lado, a norte de Coimbra continua a não se distinguir na oralidade a “V” da letra “B”.
O debate sobre o galego, o seu futuro e a sua relação com o castelhano é agora um debate político. E é neste contexto que, numa iniciativa popular, o Parlamento Regional da Galiza aprova, em 2014, a Lei Paz Andrade, por unanimidade, formalizando desta forma um instrumento para a reaproximação entre o galego e a língua portuguesa.
A lei prevê a promoção da língua portuguesa nos meios de comunicação social públicos, bem como o seu ensino nas escolas de ensino primário e secundário, e a sua adoção institucional na Galiza.
Em 2015, o Estado português acompanhou esta intenção com a assinatura de um Memorando de Entendimento entre o Instituto Camões e o Governo Autónomo Galego, de forma a garantir a formação de professores e respetivos meios de avaliação para o ensino da língua portuguesa na Galiza.
O Memorando previa também o desenvolvimento de esforços para expandir a receção aberta, em território galego, das televisões e rádios portuguesas mediante Televisão Digital Terrestre, o que motivou a assinatura de um outro Memorando com a RTP para o mesmo efeito.
No entanto, passados quase seis anos, em que ponto se encontram estas iniciativas oficiais, incluindo a promoção da língua portuguesa na Galiza? Por parte do governo português, muito pouco se fez desde então.
E o que seria suposto fazer, de acordo com a Lei Paz Andrade e do Memorando? Ações de formação de professores para o ensino da língua portuguesa na Galiza, ações de promoção da língua portuguesa que acompanhassem a implementação da Lei Paz-Andrade; articulação com a RTP no sentido da emissão de televisão e de rádio, não só via cabo, mas também via TDT; e ações concretas no âmbito da indústria editorial e audiovisual portuguesa.
O que foi concretizado foi a exibição de duas sérias portuguesas, via cabo, criaram-se turmas para cerca de 3000 alunos, o que é pouco quando comparada com os números da Estremadura, que também está a valorizar o ensino e a aprendizagem do português.
Qual é a preocupação, ou o âmago da lei Paz Andrade? Fazer todos os esforços reivindicados pelos dois lados da fronteira no sentido da aproximação cultural, nomeadamente e através do ensino do português nas escolas galegas, entendido como forma de preservar o galego, que é a grande preocupação.
Por isso, Eduardo Maragoto diz, numa entrevista ao Esquerda.net, que as pessoas defensoras do galego não têm dúvida de que é urgente que o português chegue ao ensino na Galiza. “Para já, é um recurso desaproveitado pelos galegos e galegas de um ponto de vista sociocultural e económico. Por outro lado, seria vital para o próprio galego, que muda para o castelhano a grande velocidade.” E Maragoto dá um exemplo muito concreto. A palavra “brincar” galega, é igual na língua portuguesa, mas foi substituída pela palavra “jogar”, que é a palavra castelhana para “brincar”, mesmo nos livros infantis para ensinar galego às crianças.
Em Portugal, a Lei Paz Andrade não vai mais longe porque está sob a alçada do Instituto Camões e no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que pouco ou nada articulam com o Ministério da Cultura e com a Educação, nem tornam prioritária a aplicação do Memorando de Entendimento. Resulta evidente que o interesse da Lei Paz Andrade é a aproximação da Galiza a Portugal, em múltiplas dimensões. A questão é a de saber que relevância dá o governo português a esta vontade do povo galego.
*Deputada do partido português Bloco de Esquerda