Pequim quer avançar com uma bolsa de valores em Macau para captar capital para empresas da Grande Baía e investimento nos mercados lusófonos. Mas economistas avisam que a cidade pode ter dificuldade em atrair interessados, com a China a relaxar a listagem em bolsa.
A recente visita do Presidente chinês ficou marcada por muitos recados na direção de Hong Kong, onde há meio ano se sucedem protestos pró-democracia. Analistas previam mesmo que o maior aviso ao centro financeiro fosse o anúncio da criação de uma bolsa de valores denominada em renmimbi.
Xi Jinping partiu sem o fazer, mas o plano permanece em cima da mesa. A Autoridade Monetária de Macau (AMCM) confirmou ao PLATAFORMA que uma “empresa internacional de consultoria”, cujo nome o regulador não revelou, está ainda a estudar a viabilidade de um mercado bolsista na região.
“Se estamos a falar de criar um novo centro financeiro em Macau, realmente não faz sentido”, diz ao PLATAFORMA Wilson Chan Fung Cheung. O professor da Universidade Cidade de Hong Kong sublinha que só na Grande Baía Guandong-Hong Kong-Macau já existem duas bolsas de valores.
Pelo contrário, Ringo Choi Wai Wing encara com mais otimismo a “novidade”: uma bolsa denominada em renmimbi “com o mercado internacional como objetivo”. O diretor da multinacional Ernest Young para as operações de listagem em bolsa na Ásia-Pacífico lembra ao PLATAFORMA que Shenzhen tem “muitas restrições” para investidores estrangeiros, enquanto a bolsa de Hong Kong trabalha quase exclusivamente com dólares de Hong Kong.
“Um posicionamento especializado é uma escolha inevitável”, diz ao PLATAFORMA o diretor do Departamento de Finanças e Indústrias Modernas do think-tank Instituto para o Desenvolvimento da China, Yu Lingqu.
Wilson Chan aposta na liquidação do renmimbi. Já o diretor da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau, Samuel Huang Guihai defende um mercado virado para as opções e derivativos.
Albano Martins afirma ao PLATAFORMA que a bolsa poderá ser “um instrumento importante” para empresas da Grande Baía com carência de capital captarem investimento. “Macau tem excesso de poupanças, cuja aplicação não se consegue fazer aqui, porque é uma terra pequena”, explica o economista.
A China está a abrir o mercado financeiro, sublinha Patrick Rozario, diretor executivo da Moore Stephens, uma empresa de contabilidade de Hong Kong, nomeadamente permitindo às seguradoras investir em obrigações em renmimbi emitidas em Macau.
Yu Lingqu acredita que há espaço para a cidade atrair empresas chinesas de tecnologia, centenas das quais continuam à espera da luz verde do regulador da China continental para se listarem em Xangai ou em Shenzhen.
O problema, contrapõe Samuel Huang, é que no sábado passado o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional chinesa aprovou novas regras para a listagem em bolsa. Em vez de precisarem de autorização, a partir de março as empresas vão passar a ter apenas de se registar, tornando muito mais fácil o processo, sublinha o economista. “Não sei se Macau poderá conseguir atrair um número suficiente de empresas”, realça Samuel Huang Guihai .
Língua a direito
Outra opção, diz Patrick Rozario, é apostar na ligação lusófona, por exemplo ao atrair empresas dos países de língua portuguesa para listarem ações ou obrigações em Macau.
Em maio passado, Portugal emitiu pela primeira vez dívida pública em renmimbi, uma operação cuja procura ficou três vezes acima da oferta. Patrick Rozario acredita que o sucesso português pode encorajar outros países lusófonos a fazer o mesmo.
Segundo dados da empresa financeira Refinitiv, citados pelo jornal South China Morning Post, desde 2014 os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa emitiram obrigações no valor de 314,24 mil milhões de dólares norte-americanos.
Embora admita que a presença da língua portuguesa possa ajudar, Ringo Choi defende que uma bolsa de Macau deveria permitir às empresas submeter informação em chinês, português e inglês.
Choi acredita que a maior vantagem poderá ser o direito de Macau, semelhante ao da Europa continental. “Seria muito bom se o renmimbi pudesse atingir esse mercado através de um sistema legal simpático para os europeus”, explica.
O economista tem confiança que uma bolsa em Macau teria “um grande potencial”. Após a visita de Xi Jinping, o Governo central irá “avançar em força”, nem que seja necessário listar empresas estatais chinesas em Macau, acrescenta.
Mesmo Hong Kong, defende Wilson Chan, poderá sair a ganhar. O académico sugere à operadora da Bolsa de Valores da região, que em setembro falhou a aquisição da rival de Londres, no Reino Unido, que seja um dos acionistas na futura bolsa de Macau.
Tendo em conta que o arrendamento de escritórios e os salários são mais baixos em Macau, essa opção sai mais barata do que expandir a bolsa de Hong Kong, sublinha. A zona de comércio livre na ilha vizinha de Hengqin é uma outra hipótese, insiste o professor.
Wilson acredita que muito dos peritos financeiros da cidade não teriam problemas em mudar-se para o outro lado do Delta do Rio das Pérolas, ajudando assim a colmatar a falta em Macau de recursos humanos qualificados e com experiência.
Já Patrick Rozario, cuja família é de Macau, pensa que a maioria dos quadros para a futura indústria financeira da região virá da China continental: “Banqueiros e contabilistas com experiência no estrangeiro”. No início, a cidade poderá contratar pessoal de fora, mas “as novas gerações irão investir o tempo a estudar” economia e finanças, prevê Samuel Huang.
Empresas locais fora de jogo
Uma bolsa de valores em Macau não iria atrair companhias locais, dizem os economistas. Afinal, sublinha Patrick Rozario, as operadoras de casinos já estão listadas em Hong Kong ou nos Estados Unidos. Fora da indústria do jogo, “há muito poucas empresas de dimensão em Macau”, diz o diretor-executivo da empresa de contabilidade Moore Stephens.
Os custos da listagem em bolsa seriam demasiado elevados para pequenas empresas, acrescenta Samuel Huang Guihai. Além disso, lembra o diretor da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau, seria “complicado” prevenir casos de negociação com informação privilegiada. Albano Martins é mais categórico: “Ninguém de Macau vai entrar nessa bolsa”. A esmagadora maioria das empresas locais não tem contabilidade organizada, recorda o economista, uma vez que isso só é exigido a sociedades com lucros acima do milhão de patacas em média no espaço de três anos.
Mesmo as poucas empresas de Macau listadas em Hong Kong “foram obrigadas a fazer uma série de operações” para cumprir os requisitos, acrescenta Albano Martins. O antigo funcionário da Autoridade Monetária de Macau diz que a falta de contabilidade organizada também explica a relutância da banca local em conceder empréstimos.
Regulação e capital são desafios
Um dos principais desafios de uma futura bolsa de valores de Macau, diz Ringo Choi, virá da escolha do renmimbi como moeda. O sistema financeiro da cidade vai precisar “de uma enorme reserva” de capital na moeda chinesa, sublinha o diretor da multinacional Ernest Young para as operações de listagem em bolsa na Ásia-Pacífico.
Segundo dados da Autoridade Monetária de Macau (AMCM), no final de outubro a banca local tinha depósitos em renmimbi no valor de quase 39,5 mil milhões de yuan, o equivalente a apenas 6,2 por cento do registado em Hong Kong.
Outro desafio vai ser a regulação, prevê Patrick Rozario. O diretor-executivo da empresa de contabilidade Moore Stephens diz que Macau vai ser obrigado a desenvolver e adotar métodos de contabilidade internacionais.
Mas como a maioria das empresas listadas numa eventual bolsa local virá de fora da cidade, Albano Martins diz que o peso da responsabilidade irá pender mais para o exterior. No caso da China continental, “é um bocadinho um tiro no escuro”, lamenta o economista.
A AMCM ou o futuro regulador de uma bolsa de valores em Macau “tem de garantir que o desempenho das empresas listadas não é fictício” e que é certificado por grupos de contabilidade idóneos, refere o economista.
Caso contrário, avisa, Macau arrisca-se a ter um novo escândalo semelhante ao dos depósitos ilegais junto de intermediários de jogo que afetaram milhares de residentes. “Haverá muitos gananciosos a querer sacar dinheiro de meia dúzia de loucos”, alerta. “Basta uma empresa fraudulenta ir ao ar para arruinar de uma vez a reputação da bolsa de Macau.”
Vítor Quintã 03.01.2020