Xi Jinping prepara-se para enaltecer o modelo de Macau na prática do Princípio Um País Dois Sistemas. Os olhos do mundo vão estar nas mensagens que o presidente vai deixar em Macau no contexto da guerra comercial com os EUA e da crise em Hong Kong.
“Os compatriotas de Macau têm uma tradição gloriosa de patriotismo e sempre tiveram uma relação de sangue e afinidade mútua com as pessoas do resto do país. De volta aos braços da Mãe Pátria, Macau terá certamente um futuro ainda mais brilhante”. Foi desta forma que o então Presidente da República Popular da China (RPC) Jiang Zemin terminou o discurso por ocasião da transição de administração de Macau de Portugal para a China, à meia-noite de 19 para 20 de dezembro de 1999. O atual Presidente, Xi Jinping, era na altura vice-governador da província de Fujian e terá ouvido com toda a atenção as palavras de Jiang. Menos de dez anos depois, Xi visitava Macau, em Janeiro de 2009, já como Vice-Presidente, antes de regressar em dezembro de 2014, já vestindo fato de líder da RPC para dar posse a Chui Sai On, que então iniciava o segundo mandato como Chefe do Exectivo. O cenário vai repetir-se na próxima semana nos dias 19 e 20 de dezembro, desta vez para empossar o novo líder do Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), Ho Iat Seng e equipa. Também na altura a questão de Hong Kong pairava na ressaca ainda do Movimento Occupy Central. Mas desta vez, com a crise que se prolonga ao longo de mais de seis meses, a região vizinha estará ainda mais presente nas mensagens implícitas e explicitas. Os discurso oficiais em Pequim ao longo das últimas semanas ditaram o tom que se espera de Xi Jinping: Macau é um exemplo de sucesso da implementação do princípio Um País Dois Sistemas e uma caso de empenho patriótico na salvaguarda da segurança nacional.
O bom e o mau aluno
Leon Ieng, professor de Administração Pública na Universidade de Macau, salienta que a visita de Xi acontece no final de um “annus horribilis” para a liderança em Pequim, que teve de acudir a três “fogos” simultâneos que acabaram por se entrelaçar: a guerra comercial lançada por Washington, a crise da lei de extradição em Hong Kong e o processo político em Taiwan que, ao que tudo indica, ditará um segundo mandato para a presidente Tsai Ing-wen – de cariz independentista – nas eleições de janeiro de 2020. “Tendo em conta este contexto antecipo que Xi Jinping vai reafirmar Macau como modelo da prática Um País, Dois Sistemas, salientando que o sucesso de Macau comprova a vitalidade do princípio. Macau deverá conhecer nesta viagem novos anúncios de políticas favoráveis por parte do Governo Central”. O elogio rasgado à RAEM é também projetado por Zhang Baohui, docente de ciência política na Universidade de Lingnan em Hong Kong: “Pequim entende que Macau corporiza na perfeição a fórmula”. O contraste com Hong Kong é uma evidência. Na semana passada em Pequim, o presidente da Assembleia popular Nacional (APN), Li Zhanshu, afirmava que a antiga colónia britânica devia aprender com o exemplo de Macau, que tem patriotas ao leme das instituições. No entanto, analistas ouvidos pelo PLATAFORMA sublinham as diferenças entre as duas cidades. “O modelo de Macau não poderá ser transplantado para Hong Kong” argumenta Sonny Lo, professor na Universidade de Hong Kong e especialista em questões das duas regiões. Zhang Baohui concorda ao lembrar que as RAE são “duas entidades muito diferentes, algo que radica nas experiências coloniais diversas e no desenvolvimento político divergente desde a transferência de soberania”.
Em todo o caso, a comparação é inevitável e tem sido destacada por dirigentes em Pequim. Leon Ieong explica que no entendimento do Governo Central, “o Chefe do Executivo é um dirigente local que está sujeito a determinados critérios de avaliação de desempenho”. Entre eles encontra-se não apenas o desenvolvimento económico – em que as duas regiões têm tido resultados positivos – mas também, com particular ênfase, mais recentemente, na salvaguarda da segurança nacional, “uma área prioritária para o Governo Central”. Ieong conclui que “é nesse sentido que Macau é retratado como modelo para Hong Kong” na medida em que legislou o Artigo 23o da Lei Básica já há uma década.
Poder pleno baliza autonomia
Um novo conceito ganhou especial relevância nos últimos meses, a par do patriotismo lançado pelo Conselho de Estado em 2014: o Poder Pleno de Governação do Governo Central. Trata-se de uma forma de enquadrar o que se deve entender por Alto Grau de Autonomia na prática do princípio Um País Dois Sistemas. E surge perante a forma como os protestos em Hong Kong são entendidos, ou seja como um desafio ao poder central. Apesar de ser um termo recente, Leon Ieong lembra que o próprio Deng Xiaoping em 1984 tinha clarificado que o Alto Grau de Autonomia não implica a ausência de intervenção do Governo Central, nomeadamente quando estão em causa ameaças aos interesses nacionais. Ou seja, “Pequim tem um entendimento bastante instrumental da autonomia, na medida em que esta está condicionada face ao que serve o interesse nacional”. No futuro, com o avanço desta lógica, “é previsível que a autonomia quer de Hong Kong quer de Macau saia diminuída de uma forma ou de outra”.
Para Sonny Lo há uma dimensão ideológica que sobressai nesta questão. “Numa perspetiva liberal o Poder Pleno de Governação do Governo Central e o Alto Grau de Autonomia funcionam numa dinâmica de jogo de soma zero, mas não é dessa forma que a visão Marxista do PCC entende este processo uma vez que encara as duas partes da equação como perfeitamente compatíveis”. Já Zhang Baohui prefere esperar para ver, uma vez que se está perante “um conceito ainda pouco claro”, não sendo bem perceptível a articulação com o Alto Grau de Autonomia. “Precisaremos de esperar anos para testemunhar a cristalização deste novo conceito na prática governativa”, remata.
Prendas a caminho
Xi Jinping prepara-se para anunciar em Macau medidas de apoio à criação de novos serviços financeiros para diversificar a economia da RAEM, segundo a agência Reuters, que cita fontes oficiais e do setor empresarial.
As políticas passarão pela criação de uma bolsa de valores denominada em renminbi, ao mesmo tempo que serão dados passos rumo à utilização da moeda chinesa para trocas comerciais internacionais. Um fonte revelou à Reuters: “a indústria financeira costumava ser algo que estava reservado para Hong Kong, mas agora queremos diversificar”.
Xi deverá também tornar oficial a concessão à RAEM de direitos de utilização do porto de Hengqin até 19 de Dezembro de 2049, na sequência de uma proposta que tem estado a ser analisada pela Assembleia Popular Nacional (APN).
As visitas anteriores de Xi
Xi Jinping desloca-se a Macau como Vice-Presidente da República Popular da China. Na altura já era visto como o mais que provável sucessor de Hu Jintao na liderança do Partido Comunista da China e da RPC. No PCC Xi tinha a cargo a gestão política das regiões administrativas especiais. Na visita a Macau, teve encontros com forças vivas da comunidade e deixou elogios ao “espírito de tolerância e abertura das gentes de Macau” e uma mensagem de urgência na necessidade de apostar na diversificação económica.
Regressa à cidade agora como Presidente da RPC e Secretário-geral do PCC. Xi Jinping veio a Macau para dar posse a Chui Sai On no início do segundo mandato como Chefe do Executivo e aos restantes altos cargos da região. Xi também presidiu às cerimónias comemorativas do 15o aniversário da RAEM. Visita surge pouco depois do Movimento Occupy que paralisou o centro financeiro de Hong Kong. No discurso, Xi fez um apelo ao Governo de Macau para lidar com os problemas sociais que se arrastam e para dar maior atenção à juventude.
Quando Hu Jintao “ralhou” com Tung Chee-hwa em Macau
Recuando no tempo 15 anos, o então Chefe do Executivo de Hong Kong, Tung Chee-hwa, estava também a braços com uma crise política resultante dos protestos, em 2003, contra a proposta de regulamentação do Artigo 23o da Lei Básica (lei de segurança nacional), num processo que passou a ter como alvo a governação de Tung como um todo. De visita a Macau para dar posse ao segundo mandato de Edmund Ho, Hu Jintao dirigiu-se a Tung, perante outros membros do Governo de Hong Kong e o olhar dos jornalistas, e avisou-o que devia sintetizar as experiências, identificar as limitações, afinar a capacidade administrativa e aumentar a qualidade da governação”. Menos de três meses depois Tung demitia-se do cargo de chefe do governo.
José Carlos Matias 13.12.2019