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“Em vez de estarmos sempre a chorar, temos de perceber que a vida está aí”

Que resposta oferecer quando se pergunta qual o sentido da vida? Miguel Gonçalves Mendes filmou quatro anos para lá chegar. O documentário que resultou deve estrear em 2019.

O realizador português Miguel Gonçalves Mendes passou quatro anos em rodagem à procura da resposta para a maior questão de todas – “O Sentido da Vida”, título do seu último documentário cujas filmagens terminaram este mês e que tem estreia prevista para 2019. Em quatro anos, acompanhou Giovane, um jovem brasileiro com uma doença genética rara, numa viagem pela história da difusão desta doença de origem portuguesa pelo mundo, e seguiu sete figuras públicas que diz representarem as diferentes dimensões da humanidade. O filme sobre o que nos move começou por causa da morte e, hoje, Miguel Gonçalves Mendes ensaia uma resposta: “a vida está aí” para que sejamos nela o que quisermos ser. Sobre Macau, um dos locais de filmagem e região sempre revisitada pelo realizador, Gonçalves Mendes sente-o a perder a alma e incipiente no plano cultural. “O que falhou a Macau foi Portugal, que foi um péssimo administrador”, acusa.

 

– Como é que surgiu a ideia do filme?

Miguel Gonçalves Mendes – Foi na sequência do “José e Pilar” [documentário sobre o Prémio Nobel português da literatura]. Todos os meus filmes centram-se muito na morte, que é um medo que tenho. Comecei a pensar que a minha filmografia é um bocado chorona, sempre nesse sentido da morte, do medo de morrer. E pensei que era muito mais interessante perceber o que nos faz estar vivos, sobretudo nesta época de crise em que o sistema está em colapso, em que houve muita gente que deixou de acreditar ou de ter algum tipo de religiosidade. O que nos faz estar aqui e seguir em frente? O filme procura um bocado essa resposta. Sou ligeiramente descrente. Acho a humanidade um desastre e tenho dúvidas se nós, como espécie, devemos viver pela destruição que causamos. Esta questão do “para onde vamos e o que fazemos” é comum a todos, sobretudo hoje em dia, em que ainda estamos mais perdidos. Gostava que quem fosse ver o filme saísse da sala de cinema com o ímpeto de transformar tudo, de querer viver plenamente. 

– Há várias perspectivas no filme?

M.G.M. – O filme acaba por ser também um género de cápsula temporal e cristalizar este tempo esquizofrénico em que vivemos. Há sete pessoas reais, entre as quais o Giovane, o herói do filme e o personagem principal, que sofre de paramiloidose familiar. É uma doença de origem portuguesa e com uma taxa de morte elevada. Na iminência de fazer o transplante de fígado, decide fazer uma viagem e percorrer a rota que se pensa ter sido a viagem que espalhou a doença há 500 anos. Viajámos durante nove meses, até ser chamado para o transplante, e durante quase um ano não pudemos gravar com ele. No filme, é o indivíduo perdido que está à procura de sentido para a vida. Em paralelo, acompanhamos a vida de sete figuras públicas, durante três anos, que funcionam como uma espécie de novos heróis do mundo moderno. Através do olhar do Giovane, temos contacto com a dimensão pública dessas pessoas e depois com a dimensão privada. Essas sete figuras representam papéis de um espectro variado para que as pessoas se possam identificar. Na política, acompanhamos a campanha da Marina Silva e o processo de ‘impeachment’ de Dilma Rousseff. Na justiça, temos o juiz Baltasar Garzón e a tentativa de libertar o Julian Assanje da Embaixada do Equador. Temos o escritor português Valter Hugo Mãe e Hilmar Örn Hilmarsson, que é o princial músico irlandês e foi mentor dos Sigur Rós e da Bjork. Mariko Mori, artista plástica japonesa. Acompanhamos a primeira viagem do astronauta Andreas Mogensen, que levou a nossa câmara. E o Colby Keller, um ator pornográfico.

– Porque escolheste estes personagens e como chegaste a eles?

M.G.M. – É porque sou fofinho e tenho um sorriso bonito (risos). Foi um processo horrível. Para conseguir o Andreas demorámos dois anos. No caso do Baltazar e do Assange, todas as filmagens na Embaixada do Equador foram um problema porque algumas coisas podiam virar-se contra o Julian. Foi uma loucura de produção. Costumo dizer que são quatro pessoas a montar o “Guerra das Estrelas”. Mas em termos de arquétipo, achava que era o mais representativo da humanidade. A política, o sexo, a ciência, a cultura… Achava que os personagens representativos de cada área nos podiam retratar como um todo. A doença do Giovane, por mais trágica que seja, era a premissa para falar sobre a história da globalização e do mundo. O Giovane tem uma doença que nasceu em Portugal e que Portugal espalhou pelo mundo. Estamos efetivamente conectados. Podemos continuar a ser tribais e com nacionalismos baratos, mas a verdade é que somos um só. 

– Já lá vão quatro anos de trabalho. Não é demasiado tempo com um projeto?

M.G.M. – Ainda sofro bastante com a questão do tempo, mas sofria mais. É horrível, sobretudo tendo em conta as condições precárias em que trabalhamos. Mas a verdade é que por mais cansativo e destrutivo que seja, foram anos duma intensidade e riqueza em termos humanos que me levam a pensar que já vivi o quádruplo do que vive uma pessoa normal. É muito chato e longo, mas a riqueza que o filme me trouxe é brutal. Tenho orgulho – e até pode parecer foleiro e vaidoso – de ter tido o prazer de conviver com o [Mário] Cesariny [poeta português também objeto de um documentário do realizador] durante três anos, com o Saramago durante quatro, e de agora estar a trabalhar com pessoas extraordinárias. A minha mãe sempre me ensinou a tornar o impossível possível. É uma coisa que eu faço até ao limite e às vezes até demais, pondo em causa a minha saúde e felicidade. Há a parte má. É tudo tão instável que não consegues construir uma série de coisas que também nos fazem falta, como o amor e as relações.

– A relação com a morte mudou com o projeto?

M.G.M. – Tinha um pânico enorme de morrer. E a verdade é que acho que não somos ninguém para termos medo de morrer. Espero que este filme também seja uma forma de nos apaziguarmos com esta questão. Em vez de estarmos sempre a chorar com os nossos dramazinhos, temos é de perceber que a vida está aí. O filme é um apelo para que as pessoas sejam o que querem ser, e mostra que somos uma comunidade maior que nós e que temos de facto que lutar para que este mundo seja mais habitável, digno, solidário e possível para a existência.

– Foi uma viagem de mais de 56 mil quilómetros, sempre por mar ou por terra. Vês o mundo de outra forma?

M.G.M. – Há uma coisa que é comum a todos os países: a riqueza e a miséria excessivas. E todos são racistas e têm um sentimento de superioridade em relação ao outro. É impressionante como em todos há esta questão tribalista em que se olha para o outro como se fosse inferior. Não houve nenhum país que escapasse a isto. É muito triste. 

– Macau foi um dos territórios onde gravaste. 

M.G.M. – Tenho uma relação especial com Macau. Já aí estive várias vezes, assisti à transição, filmei uma série que se passa em Macau, “Nada Tenho de Meu”. Há uma alma que temo que esteja a desaparecer. Claro que uma pessoa não pode ser saudosista, mas havia uma mistura inacreditável. Quando fui aí desta última vez, senti que havia uma certa ‘disneylização’. Quando começas a fazer a cópia da cópia da cópia tiras o valor ao real e isso é uma coisa que está a acontecer na história da humanidade e de que tenho pena. 

– Já filmaste várias vezes em Macau. É uma cidade cinematográfica?

M.G.M. – É incrivelmente cinematográfica, incluindo a parte dos casinos e dos neóns. Também tem uma paisagem europeia, os resquícios da passagem portuguesa, que ainda a torna mais especial. Macau, talvez ainda mais que Hong Kong, tem uma diversidade de paisagem e de décors que a tornam um centro de filmagens brutal, pela diversidade de arquitetura, paisagem e espaços.

– Macau tem dinheiro, está a apostar nas indústrias criativas, criou um festival internacional de cinema. Achas que tem capacidade para se tornar um território onde as artes assumam um papel importante?

M.G.M. – O dinheiro ajuda muito, mas não é tudo. A questão é se consegue ter um tecido criativo que esteja no território. Não basta fazer festivais. Tem é de conseguir ter artistas que criem aí. Mais do que fazer festivais, a questão é se as cidades têm alma ou não. O que senti é que Macau perdeu ligeiramente a alma. Se todos os habitantes se tornarem empregados de casinos, não há qualquer ligação à terra. Não há criação. Podes fazer festivais, mas fica alguma coisa? As pessoas vão ou é só a elite? O equilíbrio está aí: ter meios, ter público e condições para os criadores se fixarem e criarem. Macau pode tornar-se num centro de excelência cultural na região mas para isso tem de manter certas especificidades, segurar criadores e ser mais cosmopolita, menos fechado. E aí há problemas que também estão relacionados com uma certa elite portuguesa, que deixa muito a desejar. Em Portugal acontece o mesmo.

– O que tem falhado para Macau não estar tão desenvolvida culturalmente?

M.G.M. – O que falhou a Macau foi Portugal, que foi um péssimo administrador, sobretudo nos últimos anos. Muitos portugueses foram para Macau atrás da árvore das patacas. Não se misturavam com ninguém e nem se dignavam a aprender três ou quatro palavras chinesas. Tinham uma posição altiva face à comunidade que os rodeava e olhavam com desdém para a comunidade chinesa e mesmo para a macaense. Esse amor à terra e contributo para que se tornasse um lugar melhor não foi deixado. É inacreditável como o português não era ensinado nas escolas e é agora a China que o está a fazer. O maior erro de todos começa com Portugal. Mesmo hoje, Portugal podia fazer um trabalho que não faz. Portugal tem sorte que Macau ainda hoje queira preservar a cultura portuguesa. 

– Pensas em Macau para novos projetos?

M.G.M. – Para poder pagar as contas deste filme tive de aceitar outros dois. Um sobre Fátima e outro sobre o Eduardo Lourenço. Nos próximos dez anos não me posso meter em mais nada ou tenho de ser internado num hospício. O projeto seguinte é uma adaptação para cinema do “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do Saramago. Mas voltar é sempre um prazer porque eu adoro Macau. A minha passagem para a idade adulta acontece em Macau e por isso há de ser sempre especial. O que era bom é que conseguíssemos que se perdesse essa sensação de que Macau funciona como espaço de fuga, sobretudo para os portugueses. Sente-se que toda gente que está aí está a fugir de alguma coisa. Era bom que Macau não fosse só um espaço de fuga onde nos refugiamos, mas um espaço onde construímos alguma coisa.

– Falaste das limitações de financiamento. Como é que conseguiste orçamento para um projeto tão longo?

M.G.M. – O filme é muito caro, um milhão e meio de euros. Bem, é caro para a realidade portuguesa e para um documentário, porque se fosse a sério seria o triplo. Ainda nos faltam 200 mil euros. Temos vários apoios. Grande parte do financiamento que consegui foi porque mantive a cooperação que tinha com o Fernando Meireles – e por isso é que estou a viver em São Paulo – e com o Pedro Almodôvar. É o que nos tem salvado minimamente. A coisa oscila entre ter ou não ter dinheiro para comer, e não estou a brincar. Mas olha, pelo menos sei que a minha vida é plena e isso é bom.

– Onde é que gostavas de estrear o filme?

M.G.M. – Está garantido que vai estrear em Portugal, Brasil, Espanha, Islândia, Estados Unidos, Japão e México. Mas há uma série de lugares onde filmámos e onde gostava que estreasse, como Macau e Goa. 

Catarina Brites Soares

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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