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Macau não tem nem quer ensino doméstico

O ensino doméstico de menores — conhecido pela expressão em inglês ‘home-schooling’ — não é permitido no território. E, dizem os investigadores da área, mesmo que fosse, os pais chineses são muito pouco recetivos a alternativas ao ensino tradicional.

A editora Sofia Salgado e o fotógrafo Mica Costa-Grande saíram de Macau em 2000 e assumiram o ensino doméstico dos dois filhos menores durante cinco anos, numa viagem à volta do mundo. Hoje, que já se passaram 17 anos e ambos terminaram as respetivas licenciaturas com sucesso, fariam tudo de novo. 

São um caso raro num território onde não é permitido o ensino doméstico de menores com idades entre os cinco e os 15 anos. “Estão sujeitos à escolaridade obrigatória e os encarregados de educação têm o dever de proceder às suas ‘matrículas de acesso ou de frequência escolar’”, refere a Direção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) numa resposta enviada ao PLATAFORMA. 

Os portugueses Sofia Salgado e Mica Costa-Grande decidiram partir de Macau e fazer uma viagem à volta do mundo quando os dois filhos tinham entre quatro e cinco anos. “Quando resolvemos viajar, punha-se a questão da escola porque o Eloi estava a chegar à idade escolar”, recorda a antiga jornalista da TDM. “Vamos ensiná-los nós – e eu assumi o ensino deles.” Mas não se tratava de “religião” ou crença, era por necessidade. 

Só cinco anos depois foram integrados no sistema de ensino regular no Brasil, intercalando uma passagem por Portugal, onde “estavam a preparar o veículo que iria seguir para as Américas”. Nessa altura, como iriam ficar algum tempo parados, Sofia e Mica “legalizaram” a situação, registando as crianças em Portugal. “Lá, o ensino doméstico é permitido”, diz. “Em Portugal fizeram um pequeno exame para saber se sabiam ler e escrever minimamente.” Depois, acabaram por “andar na escola uns meses”, seguindo posteriormente para as Américas. “Tenho família que leciona no ensino básico e forneceu-me os livros. Levei os livros comigo e ia dando as aulas a bordo de um veículo especial”, diz.

E, se no início ainda davam aulas no veículo que os transportava, rapidamente perceberam que seria mais interessante levá-los para a rua. “Optámos por dar aulas na rua — iam para as pirâmides mexicanas ou para fábricas onde se montavam automóveis”, recorda.

Não tinham aulas todos os dias nem havia horários rígidos, mas Sofia ia seguindo os livros do currículo português. “Umas leituras, umas cópias, mas basicamente era estar lá fora e aprender as coisas lá fora”, afirma, realçando que “ver animais no Canadá ou estar no meio da neve, com 47 graus negativos” foi “mais instrutivo” do que estarem sentados numa sala de aulas. 

Chegados ao Brasil, Sofia inscreveu os filhos numa escola diferente, assente em valores como a solidariedade, autonomia e responsabilidade, em São Paulo. “Procurei uma escola democrática”, recorda. E ali ficaram até que tivessem entre 13 e 14 anos, passando então para um estabelecimento “mais tradicional.” Aos 21 anos, Eloi completava uma licenciatura em Belas Artes, em Lisboa, e Sásquia em Fotografia, no Porto. “Sempre foram ótimos alunos”, garante a mãe. 

Olhando para trás, a jornalista diz que “o ensino hoje está tão formatado” que fica satisfeita por ter assegurado esta experiência aos filhos. “Fizeram uma escola maravilhosa. Estiveram a passear e a conhecer, sem horários para dormir e levantar. Eram livres”, salienta.

Catarina Freitas, autora de um blogue intitulado “Entre Tanto a Bordo”, partiu de Macau em 2014 e começou uma viagem com o marido e os três filhos, em março de 2015. Acabou, assim, por assumir o ensino doméstico dos filhos de dez, 13 e 15 anos. “Sabíamos que íamos estar longe por algum tempo e o ensino doméstico mostrou-se a forma mais simples e imediata para dar continuidade à escola”, refere a engenheira do ambiente. Assim, “um mês antes da partida transferiram as matrículas para o ensino doméstico” e, ainda em Portugal, começaram a adaptar as crianças ao novo método. “As crianças deixaram de ir à escola e começámos a estudar em casa com algumas saídas no campo”, recorda. 

De início “mantiveram o vínculo ao ensino doméstico do Ministério da Educação e, a partir do segundo ano (e até agora), inscreveram-se numa escola de ensino doméstico particular, a Clonlara [nos Estados Unidos], que abriu em português há três anos”. Catarina diz que as crianças “têm aulas todos os dias no período da manhã durante duas e três horas”, recorrendo aos “livros escolares correspondentes a cada ano letivo”, acompanhando assim as “matérias abordadas no ensino convencional.” Depois, “há toda uma vivência e experiência absorvida ‘in loco’”, com uma “componente histórica local e ao nível de tradições e cultura”. 

Olhando para as vantagens deste sistema, Catarina não tem dúvidas: “A principal é sem dúvida terem a oportunidade de aprender muitas coisas através da experiência no terreno, maior diversidade na aprendizagem e desenvolvimento de autonomia e responsabilidade no estudo.” 

Quanto a desvantagens, responde de outra forma. “Nestas condições em que vivemos de caixeiros viajantes não faria sentido ser de outra forma”, diz. Seguindo o currículo da Clonlara, Catarina diz que “se valorizam os interesses e gostos das crianças e onde todas as atividades são contempladas na ‘avaliação’”, inserindo-se assim “outras vertentes como o windsurf, surf, snorkel, leitura, trabalhos manuais, culinária, fotografia”.

O caso de Macau

A investigadora Teresa Vong contextualiza: “O ensino doméstico é basicamente uma prática contra as instituições porque as pessoas não confiam na educação pública e consideram não haver muitas hipóteses.” Em Macau, “a maioria dos pais confia no sistema de ensino” e acredita que “tem muitas opções”. 

Aliás, a docente da Universidade de Macau não considera que “o território tenha condições maduras para implementá-lo”. Depois, é preciso também que os pais sejam qualificados para fazê-lo. “Conheço estrangeiros que estão a fazê-lo [no Reino Unido e nos Estados Unidos], mas são sobretudo professores universitários ou diplomatas”, vinca.

Sobre as possíveis vantagens deste sistema, a docente relativiza. “Hoje em dia, o ensino doméstico em muitos países já está formalizado — ou seja, os pais que preferem o ensino doméstico precisam de preparar um programa que depois é submetido a aprovação da entidade que supervisiona”, diz. E, na maioria dos países, os estudantes que seguem o ensino doméstico, antes de terminarem o ensino secundário, “precisam de fazer um exame nacional para assegurar a qualidade”. Por isso, prefere dizer que se trata de uma opção familiar.

Os países que oferecem esta alternativa precisam, porém, de assegurar dois pontos: “O direito das crianças à educação e a qualidade da educação.” E, na opinião desta investigadora, a não ser que o Governo local tenha “legislação promissora” no que toca aos direitos das crianças, teme que estes “não possam ser realmente assegurados” em Macau. 

O investigador da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST), Keith Morrison, diz que o ensino doméstico é tudo menos linear, havendo diferentes motivos por trás das opções dos pais, múltiplas abordagens e resultados variados. Assim, olhando para os exemplos do Reino Unido e dos Estados Unidos, há quem o faça “por acreditar nos valores”, enquanto outros adotam-no por “as crianças terem necessidades educativas especiais” ou por os filhos “estarem infelizes ou mal adaptados às escolas”. E ainda há aqueles que seguem convicções religiosas ou se manifestam insatisfeitos com o ambiente escolar. 

E, olhando para a experiência dos Estados Unidos, onde a prática é já bastante popular, o investigador diz que mesmo no país não há uma regra sobre a forma de atuação. “Varia de estado para estado, alguns têm exames, outros não; nalguns estados há uma monitorização mais apertada do que noutros”, comenta. Depois, há entidades que acreditam o ensino doméstico, dependendo dos estados. 

Porém, dada a diversidade de situações, o docente afirma que as críticas que normalmente se fazem a este sistema de ensino, e que se referem à falta de sociabilização, já não fazem sentido. “Há muitos pais que inscrevem os filhos em clubes, associações e outras atividades, além de garantirem que sociabilizam com os amigos”, refere. 

Pode correr-se algum risco se “os conhecimentos ou experiência dos pais forem escassos”, mas isso “está a tornar-se um problema menor devido à Internet, que assegura a disponibilidade ilimitada de recursos”. Assim, dada a panóplia de motivos, experiências e resultados, Keith Morrison refere que a “investigação existente é inconclusiva”, não se podendo perceber se um sistema é melhor do que o outro. 

No caso específico do território, mesmo que o ensino doméstico fosse permitido, este seria difícil de adotar. “Provavelmente, só os expatriados o fariam”, refere. Primeiro, porque os pais no território trabalham. Depois, porque não acreditam que haja uma alternativa à escola. “É uma forma de pensar muito convencional — a educação é o que tens na escola”, refere, acrescentando que não se questiona a validade do sistema. 

Luciana Leitão

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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