Há cerca de uma década, o republicano George Bush e os Media norte-americanos, com o Wall Street Journal à cabeça, lançaram uma campanha contra Inácio Lula da Silva, ameaçando o Brasil com boicote económico e crise financeira caso fosse eleito um presidente que era tratado na alta finança como uma espécie de “monstro de esquerda”. O povo brasileiro não se assustou. Pelo contrário, a pressão exercida pela Casa Branca terá mesmo catapultado sentimentos anti-yankees comuns em toda a América Latina. No último fim de semana, o povo grego respondeu com a mesma firmeza aos fantasmas do fim do Euro e da falência grega, transformando o Syrisa de Alexis Tsipras numa espécie de herói na luta contra o dogma da austeridade, corporizado pela Alemanha protestante. A reação entusiasta de António Costa, candidato do Partido Socialista às eleições legislativas Portugal, revela bem a velocidade com que outros líderes europeus entrarão nesse comboio negocial. E se o Poder vence em Espanha, como indicam as sondagens, a Europa de Merkel tem os dias contados…
Não se trata de defender o descalabro orçamental, muito menos qualquer irresponsabilidade contratual. Aquilo que está em causa é medir a capacidade de resiliência das economias periféricas da União Europeia, estando já demonstrado que a economia em geral – bem como as pessoas em particular – são incapazes de recuperar enquanto não houver investimento em contraciclo. A tese de Alexis Tsipras é a de que não é sequer possível pagar a dívida sem um estímulo que retire da depressão os agentes económicos e a massa crítica. Tsipras terá mais apoios do que alguns esperariam. Quanto aos arautos da austeridade, perdida que está a batalha nas urnas gregas, terão de se sentar à mesa para produzir soluções que, respeitando critérios orçamentais e racionalidade económica, criem simultaneamente condições efetivas para a recuperação.
O que não faz sentido, mesmo em teoria económica fria, é matar a galinha e pretender que ela continue a deitar ovos, sejam eles de ouro puro ou de lata reluzente. As últimas semanas da campanha eleitoral grega provam também a flexibilidade do Syrisa, que abandonou as franjas mais radicais do seu discurso, encaixando-se numa espécie de centro esquerda reformista – e não revolucionário. O que se vai passar não é certamente o drama de Cuba, mas antes um processo negocial que não aceita a austeridade como um dogma, supostamente transitório, que ameaça impor-se como definitivo. Por fim, o povo grego deu ainda sinais de sapiência democrática: negou a Tsipras a maioria absoluta, obrigando-o a negociar uma coligação que, exigindo mudanças de paradigma, será provavelmente mais europeísta do que se pensa.
As dívidas públicas soberanas não são responsabilidade exclusiva das economias europeias mais frágeis. Não se pode descurar a evidência de que o norte e o centro da Europa falharam rotundamente ao empurrar essas economias periféricas para a construção desenfreada de infraestruturas de viabilidade económica duvidosa – fortemente subsidiadas por Bruxelas, que as classificou como prioritárias e encorajou o endividamento, contribuindo para défices que agora sonsamente condena, a cavalo de uma falsa moral. Mas há mais: a destruição do tecido produtivo dessas economias menores, protegendo os grandes produtores agrícolas e industriais, terá sido ingenuidade de quem aceitou os subsídios europeus, mas é também assacável a quem patrocinou esse modelo em benefício da agricultura francesa, do cheque compensatório britânico ou das exportações germânicas.
A responsabilidade é de todos, pelo que solução cabe também a todos, procurando o interesse comum e não estigmatizando aquilo que os divide. A questão não é moral; é de economia política! Seja qual for o resultado final, a Grécia esfrangalha nas urnas o dogma da austeridade. O que vem aí ameaça ser bem mais estimulante.