Início Moçambique “A HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE NÃO PERMITE DEMASIADO OTIMISMO”

“A HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE NÃO PERMITE DEMASIADO OTIMISMO”

 

O economista moçambicano João Mosca defende a “urgência” na reformulação das políticas agrárias em Moçambique, considerando necessário que o novo Governo adote estratégias macroeconómicas que beneficiem a agricultura, para combater os altos índices de pobreza e de desnutrição crónica no país.

 

Em entrevista ao Plataforma Macau em Maputo, o académico moçambicano alertou também para o “preocupante” crescimento da dívida pública em Moçambique, que totaliza 6, 75 mil milhões de dólares – o correspondente a 29, 6% do Produto Interno Bruto (PIB), lembrando que as expectativas que país possui sobre indústria mineira, com destaque para o gás natural, estão “muito longe” de ser alcançadas.

PLATAFORMA MACAU (P.M.) – Costuma dizer-se que a estabilidade económica de Moçambique é fictícia. Como explica tal afirmação?     

JOÃO MOSCA (J.M.) – A estabilidade económica de Moçambique é fictícia porque existem muitos elementos de risco. Na economia moçambicana, existem riscos dependentes de fatores externos, falo de variações em alguns setores da economia internacional que influenciam fortemente na evolução da economia de Moçambique. Também porque Moçambique ainda possui muitas lacunas ao nível das infraestruturas, da legislação e, principalmente, da capacidade das instituições. É por estas e outras razões que digo que é uma estabilidade económica fictícia. É verdade que, atualmente, existem elementos positivos. Por exemplo, a inflação é baixa, apesar das taxas de juro serem muito altas. Mas, na verdade, a maioria da população é pobre, quer dizer que há muita desigualdade no país. Isso pode provocar situações de instabilidade social e política. Portanto, percebe-se que em Moçambique temos uma economia cuja estabilidade está assente em fatores que podem mudar de um momento para o outro e, muitas vezes, sem a possibilidade de uma intervenção direta do Governo.

 

P.M. – O FMI anunciou recentemente que a estabilidade macroeconómica de Moçambique é “robusta”, com o crescimento económico a rondar os 7% anualmente. Como é que analisa estes pronunciamentos?

J.M. –  Estes dados estão certos. Realmente a economia do país está crescer, há investimento direto do estrangeiro e há entrada de capital em Moçambique. Entretanto, essa é uma parte da análise. O problema é que as instituições públicas e as organizações como o FMI, geralmente, fazem análises esquecendo-se dos vários aspetos da economia e da sociedade. O que o FMI diz pode não estar errado, em termos de indicadores, mas existem muitos outros fatores económicos, sociais e políticos que devem ser considerados na medida em que uma economia é o conjunto de vários aspetos. No entanto, é verdade que o FMI tocou em alguns aspectos também importantes, como a questão da dívida pública. Então, percebe-se que, por regra geral, os relatórios do FMI são de natureza restritamente económica e não fazem análises interdisciplinares. Em minha opinião, é aí onde reside o défice analítico desse tipo de organizações.

 

P.M. –  Moçambique vive um “paradoxo”, entre um crescimento económico a rondar 7% anualmente, e a pobreza e a desnutrição crónica na maior parte da população. Como explicar este fenómeno e o que fazer para o reverter?    

J.M. – O crescimento económico de Moçambique está concentrado num conjunto de diferentes setores. Temos o gás e o petróleo as infraestruturas, caminhos-de-ferro, portos, aeroportos etc. Em seguida, temos o crescimento demográfico e mobiliário das cidades, o transporte e, por fim, o comércio. Esses são os setores que estão relacionados com o motor da economia moçambicana neste momento; que estão muito concentrados pelo território e limitam-se a espaços pequenos. Estes investimentos não geram muitos empregos e, acima de tudo, são investimentos cujos benefícios não se fazem sentir no local. Então, o crescimento económico deste tipo de setores e atividades provoca um desequilíbrio ao nível do território, onde temos situações da fome, da pobreza e da desnutrição crónica. Assim sendo, para resolver esse problema, é necessário desenvolver a agricultura, no setor familiar em particular. Temos de fazer a promoção do empresariado nacional com benefícios e com formas de produção. É preciso que o Estado tenha políticas de incentivo à atividade empresarial nacional, particularmente na área da agricultura.

 

P.M. –  O que deve ser feito para que a população sinta os benefícios deste grande crescimento económico?

J.M. – O Estado tem de promover a agricultura, particularmente na produção alimentar. É preciso que se criem mecanismos para que as infraestruturas não sejam apenas grandes estradas que ligam o centro ao norte, mas sejam estradas que façam a ligação nos distritos e nas próprias localidades de forma a permitir o escoamento dos excedentes. Mas, sobretudo, temos de prestar serviços à população, falo dos serviços de educação e saúde. É preciso que se introduza a inovação para que haja aumento de produtividade. Em outros termos, temos de dinamizar todo o processo agrário, melhorar a qualidade das sementes, disponibilizar créditos e infraestruturas de regadio.

 

AUTONOMIA DO ORÇAMENTO DE ESTADO

 

P.M. – Nas suas obras alude à reformulação das políticas agrárias em Moçambique. O que exatamente está falhar? 

J.M. – Por regra geral, a política económica não é amiga da agricultura. O país pode ter boas políticas agrárias, mas se a política macroeconómica é desfavorável para agricultura os efeitos de qualquer política específica do setor agrário acabam por não ter os resultados desejados. Depois é preciso que dentro do próprio setor exista uma definição de quais são as prioridades, para extensão rural, para investigação e para as infraestruturas. Quer dizer que temos de alocar o Orçamento de Estado (OE) para as áreas que tenham maior efeito produtivo..

 

P.M. – Uma parte significativa do OE é subsidiada pela mão externa. Até que ponto esta dependência influencia as políticas adotadas internamente?

J.M. – Não acho que neste momento a cooperação internacional interfira diretamente na política interna. Podem até existir caso isolados, mas, por regra geral, os fundos são entregues ao orçamento e é o Estado moçambicano que decide como utilizar esses recursos.

   

P.M. – Quando é que Moçambique poderá ganhar total autonomia ao nível do OE?

J.M. – Eu penso que isso vai ser muito difícil. Infelizmente a nossa economia não gera riqueza suficiente para obter impostos e receitas fiscais muito avultadas. Embora seja verdade que a Autoridade Tributária (A.T.) tem trabalhado muito neste aspeto e existe uma subida significativa nas receitas do Estado que vem dos impostos. Mas ainda é muito baixo, embora esteja em crescimento. Entretanto, é preciso percebermos que essa economia tem de gerar mais dinheiro. Em segundo lugar, nós temos um Estado muito pesado, que consome muito dinheiro, muito mais do que aquilo que devia e, ao mesmo tempo, está contrair empréstimos de longo e médio prazo que podem comprometer seriamente as contas públicas. Portanto, embora a percentagem dos doadores tenha decrescido de forma significativa é difícil, para já, que Moçambique pense numa independência ao nível do OE, principalmente se pensarmos que a dívida pública está aumentar muito.

 

CRESCENTE DÍVIDA PÚBLICA

 

P.M. – Como analisa crescente dívida pública em Moçambique?  

J.M. – A dívida não é má ou boa por si. A mesma é má, se a economia moçambicana não conseguir pagá-la. É boa, se tivermos essa capacidade de pagamento e, sobretudo, quando os empréstimos são de longa duração. É também positiva quando as taxas de juro são bastante baixas, como é com a China e com a Índia. Portanto, existem condições vantajosas para contrair os empréstimos, esperando que receitas futuras possam acontecer, sobretudo ligadas aos recursos minerais. Mas, infelizmente, isto não é absolutamente líquido. As perspetivas das receitas e do desenvolvimento dos recursos minerais podem sofrer muitas variações em função de muitos fatores que não dependem da decisão do Governo. Há muitos elementos da economia nacional e internacional que podem condicionar a capacidade do Estado para o pagamento da dívida. Se isso acontecer teremos uma situação de crise. Então, neste momento há sinais que indicam que deve haver maior preocupação para com a dívida.

 

P.M. O executivo moçambicano (liderado na altura por Manuel Chang, substituído no novo Governo por Adriano Maleiane) considera a dívida pública sustentável. Como analisa este posicionamento?  

J.M. – Um ministro das Finanças tem de manter uma aparência positiva, não pode dizer o contrário. O problema é que eles fazem expetativas e previsões muito ambiciosas sem ponderar.

Entretanto, e infelizmente, nada indica que essas expetativas muito otimistas se concretizem. O carvão está em crise, o gás de Pande/Temane não cumpre os planos de produção e exportação de receitas do Estado. O gás, no norte do país, está numa situação de observação e que gera uma certa contenção. Portanto, estes são fatores que o Governo deveria ponderar e não fazer discursos tão otimistas porque isso faz parte também da gestão das expetativas, não só dos moçambicanos mas também da comunidade internacional.

 

ATUAÇÃO DAS MULTINACIONAIS NO PAÍS

 

P.M. – Como é que observa a atuação da multinacionais e, em sua opinião, quais os benefícios a nova Lei do Petróleo traz ao país? 

J.M. – Embora não tenha estudado ainda a Lei do Petróleo, sei que as empresas têm elevados benefícios fiscais e também sei que o Estado impôs algumas condições de operações dentro do território. Este último aspeto é positivo. Sei também que as multinacionais impuseram outro tipo de condições para sua própria segurança, que o Estado considerou. Entretanto, os benefícios fiscais continuam muito altos e as condições excecionais de operação também são muito favoráveis – por vezes discriminatórias em relação a outros investimentos e ao próprio empresariado nacional. Sei também que há políticas cambiais que vão ser tratadas em específico para o setor energético. Diz-se que os benefícios fiscais atraem mais investimentos e tornam a exploração em Moçambique mais apetecível. O mais importante é observamos o problema da fiscalidade. É preciso vermos quais são os limites de impostos que se podem aplicar e que permitam as multinacionais continuarem a operar em Moçambique sem afetar grandemente a competitividade moçambicana. Penso que os atuais contratos são extremamente favoráveis às multinacionais e muito pouco favoráveis ao Estado moçambicano.

 

P.M. – O que tem de ser feito para que o povo moçambicano se beneficie da indústria de gás?    

J.M. – Primeiro, é preciso que o povo tenha acesso aos diferentes tipos de consumo que o gás proporciona, falo de energia entre outros aspetos. Em segundo lugar, o povo moçambicano tem de se beneficiar com a criação de emprego. Em terceiro, com o surgimento de empresas moçambicanas que têm a capacidade e competitividade para fazer o abastecimento, a logística e a prestação de serviços. Infelizmente, falta-nos essa capacidade. As empresas nacionais são muito fracas e não conseguem concorrer com outras empresas da região no trabalho de prestação de serviços. Outro aspeto, e muito importante, é questão dos reassentamentos. É preciso que nos reassentamentos as populações sejam tratadas com muito cuidado.

 

P.M. – Os prazos para que Moçambique comece a beneficiar da produção de gás natural são polémicos, com a Governo anunciar uma data e as consultoras independentes a anunciarem outro prazo mais longo ainda. O que se pode dizer sobre essa controvérsia?      

J.M. – Existe esta controvérsia porque, por um lado, o Governo tem a necessidade de criar expetativas positivas e, com isso, justificar um conjunto de aspetos negativos que possam estar a acontecer. Na verdade, quem diz que se deve esperar não espera, porque já está a ganhar. Depois vêm as consultoras e as próprias empresas a dizerem que os prazos são mais longos. No meio de tudo isto, os prazos podem não ser cumpridos em nenhumas das partes. Ninguém é capaz de prever o que vai acontecer.

 

DEPRECIAÇÃO DO METICAL

 

P.M. – Recentemente, o Banco de Moçambique (BM) apareceu a justificar a depreciação do metical em 2014 com fatores psicológicos, em resultado da instabilidade pós-eleitoral e também da tensão política do ano passado. Concorda?

J.M. – O BM, por vezes, diz coisas que não são certas. O conflito armado existiu desde 2013, mas o metical não desvalorizou e o investimento continuou a chegar. Portanto, se houve depreciação do metical foi porque entrou menos dinheiro para o investimento. Isso deve-se a vários fatores, a instabilidade é um deles, mas não o único. O BM tem de evitar tecer discursos políticos.

 

P.M. – Quais são as medidas que o novo Governo deve tomar para trair o empresariado estrangeiro para Moçambique?

J.M. – Primeiro, deve garantir uma paz real, porque Moçambique não vive uma paz real. Nós vivemos uma paz sem paz. O Governo tem de garantir que a situação da pobreza seja resolvida. Em terceiro, é preciso que se crie uma governação que tenha uma linha de orientação e uma política que dêem garantias legais aos investidores. E, também, é necessária uma governação técnica e que sabe negociar com as multinacionais.

 

EXPECTATIVAS PARA O NOVO GOVERNO 

 

P.M. – Um novo Governo tomou posse recentemente em Moçambique, saído do escrutínio de 15 de outubro de 2014. Quais são as expectativas que tem e como observa sua composição?

J.M. – É um Governo mais jovem, embora tenha algumas pessoas com experiência. É um executivo bastante desequilibrado em termos de género. É um Governo que mantém algumas pessoas que estão relacionadas com os grupos económicos de interesses configurados na governação de Guebuza [antecessor de Filipe Nyusi].. Há uma redução de ministérios, o que é positivo. Há ministérios que possuem uma existência duvidosa, como é o Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural (chefiado por Celso Correia). As perguntas que surgem são as seguintes: o que fica na Agricultura se a terra passa para esse ministério? Agricultura sem terra, como é? Meio ambiente dentro do ministério ligado à terra?

Há também outro problema. Temos ministros que não têm experiência nenhuma no setor que estão a dirigir. Portanto, há aspetos positivos, há aspetos de interrogação que talvez se resolvam com o tempo e, acima de tudo, há provas que o novo Governo mantém os grandes interesses económicos da governação anterior. Agora, é preciso que o novo Governo evite os grandes problemas da governação anterior, falo do conflito político-militar e a pobreza. Quanto à arrogância, à prepotência, ao autoritarismo e à corrupção, acredito eu, o novo Governo não vai ser pior que o governo de Guebuza.

       

P.M. – O novo executivo de Nyusi tem menos cinco ministros e menos cinco vice-ministros. Como é que esta medida beneficiará o Estado moçambicano? 

J.M. – O sinal é bom, mas temos de ver como isso se concretiza. Ter menos ministérios não significa que, automaticamente, o novo Governo será mais eficiente ou mais eficaz. Mas pode indicar que haja uma preocupação de criar uma maior coordenação juntando pastas. Talvez signifique que há uma preocupação em criar maior relação entre diferentes áreas da governação.

Mas é preciso sermos cautelosos nas nossas expectativas porque a história recente de Moçambique não indica que devamos ser demasiadamente otimistas. O partido no poder, as principais forças económicas e os jogos de alianças políticas dentro do sistema do poder da Frelimo permanecem, e, de certa forma, isso vai refletir na nova governação. Vamos ver como Nyusi vai atuar.

 

 TENSÃO POLÍTICA

 

P.M. – A Renamo, maior partido da oposição de Moçambique, anunciou recentemente a ideia da criação de uma república centro e norte, a qual o seu líder, Afonso Dhlakama, seria o presidente. Até que ponto isto pode, de alguma forma, abalar a economia moçambicana?  

J.M. – Eu não sei muito bem o que significa governo de gestão e, muito menos, república centro e norte. Em qualquer caso, este discurso não é muito otimista. Se, nos anos anteriores, houve uma situação de instabilidade militar foi porque a governação de Guebuza não teve maior capacidade de diálogo. A Renamo não devia ter optado pela via armada, é verdade. Mas o executivo de Guebuza não abriu muito espaço para o diálogo. Agora, esperamos uma outra postura vinda da nova governação. A Renamo não deve optar pela via do conflito armado, isso é um facto, mas o novo executivo deve demonstrar interesse em evitar esses aspetos.

Estêvão Azarias Chavisso, em Maputo

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