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“Temos de proteger o património, mas temos de ser muito criteriosos”

Entre o desenvolvimento urbano e a preservação do património, perdem-se edifícios, ruas e memórias. Através do desenho e da fotografia, dois arquitetos, João Nuno Marques e Nelson Silva, têm documentado essa mudança. Em entrevista ao PLATAFORMA, a curadora Sara Neves e João Nuno Marques explicam como surgiu a ideia de transformar esses registos numa exposição - ‘Framing a Future Past’ - que levanta uma questão essencial: como preservar a identidade da cidade antes que desapareça?

Fernando M. Ferreira

– O que vos inspirou a criar esta exposição?

Sara Neves – Conheço o João Nuno e o Nelson Silva há muitos anos. Fui notando que os dois tinham uma forma muito própria de registar a cidade. Não sei se por serem arquitetos, ou por uma questão de personalidade, ambos fazem registos constantes, cada um à sua maneira. Comecei a reparar que havia pontos em comum entre os dois. O que me levou a perguntar: “Porquê estes registos – que são bonitos e muito interessantes porque mostram a evolução da cidade – ficam apenas guardados nas vossas gavetas e nos vossos discos externos? Porque que não os mostramos?”

– Como vêem o equilíbrio entre a preservação e o desenvolvimento urbano em Macau?

S.N. – Esse é um dos temas centrais da exposição. Macau é uma cidade que não tem um território ilimitado para crescer, ao contrário de muitas outras que se podem expandir. Mesmo com os aterros, há sempre um limite. Significa que há decisões difíceis a tomar. Não se pode preservar tudo, mas a observação da cidade através destes registos é uma ferramenta que nos ajuda a perceber o que realmente importa preservar.

João Nuno Marques – Concordo [com a Sara Neves]. Quando desenho, não estou a pensar na preservação da cidade. Mas, inconscientemente, acabo por registar precisamente as partes que têm um tempo de vida limitado. Se calhar porque sei que não vão durar para sempre, e isso dá-lhes um certo encanto. Parece-me que há uma intenção de preservar o património, mas ainda está um pouco desprotegido. Há edifícios que são classificados e protegidos, mas o património informal, aquilo que faz parte da identidade visual e do tecido urbano da cidade, muitas vezes é ignorado. E a solução não tem de ser sempre demolir e reconstruir – há casos em que a reabilitação seria uma alternativa mais inteligente.

Numa cidade que está sempre em mudança, os registos são ainda mais importantes, porque acredito que é impossível congelar a cidade que existe.

Sara Neves, arquiteta e curadora da exposição

– Este registo tem um caráter documental, de preservação da identidade de Macau?

J.N.M. – Sim. Embora não tenha começado com essa intenção, tornou-se num registo documental. Desenho sistematicamente, e isso é algo que vem desde a faculdade. Na cadeira de História da Arquitetura Portuguesa, tive de compilar um caderno com obras de arquitetura portuguesa desde o século XIV e percebi que, ao desenhar, retenho muito mais informação do que se simplesmente tirasse fotografias. Em Macau esse hábito tornou-se ainda mais importante. Durante a pandemia, por exemplo, fiz muitos registos.

– Como descrevem a identidade visual de Macau?

J.N.M – A identidade arquitetónica de Macau está a desaparecer. Corre esse risco, por deitar abaixo e construir sem sensibilidade para o que estava lá. Acontece na Velha Taipa, na zona junto ao Porto Interior… Essa identidade visual e arquitetónica está a desaparecer muito rapidamente. Num espaço de três ou quatro anos, três dos edifícios que desenhei [patentes na exposição] já não existem.

S.N. – Fora a parte óbvia, que é a mistura entre Ocidente e Oriente, uma das coisas que define esta identidade acaba por ser uma arquitetura sem arquitetos. Muitas coisas não são informais, porque têm forma, mas não são planeadas e acabam por ser uma parte muito presente da cidade. Muitas construções não são informais no sentido de não terem forma, mas são feitas sem um planeamento centralizado. Criaram-se espaços e soluções arquitetónicas que resultaram quase organicamente, por vezes mais interessantes que os bairros planeados. Mas esse tipo de arquitetura também está a desaparecer. Está a ser substituído por algo mais uniforme, mais padronizado.

Essa identidade visual e arquitetónica está a desaparecer muito rapidamente [em Macau]. Num espaço de  três ou quatro anos, três dos edifícios que desenhei já não existem
João Nuno Marques, arquiteto

– A exposição cobre o período de 2018-2024. Se tivesse de escolher um período-chave, qual seria?

S.N. – Quando analisámos os registos dos últimos anos, percebemos que durante a pandemia houve um aumento enorme na produção de desenhos e fotografias. O Nelson, por exemplo, fotografou a expansão dos Novos Aterros a partir da Torre de Macau. Acontece apenas uma vez e documentá-lo é um processo muito especial. E o João Nuno, enquanto estava de quarentena, desenhou a construção da nova ponte. Essa fase da pandemia, não só por uma questão de falta de entretenimento, acho que também nos obrigou, a todos, a olhar para a cidade onde vivíamos, porque estávamos cá constantemente.

– Como interpretam a ideia de impermanência em Macau?

J.N.M. – A Sara, como curadora, conseguiu identificar esse tema comum nas nossas duas abordagens. É um caráter perene em Macau, mais crítico, porque a cidade muda muito rapidamente. No entanto, noto que há cada vez mais interesse pelo registo da cidade. Existem páginas no Facebook onde as pessoas partilham fotografias antigas de Macau, e noto que há um amor pela cidade. Ainda há um carinho especial em relação a certos locais.

S.N. – A questão da impermanência surgiu no trabalho dos dois mas também por conhecer Macau. O João Nuno tem uma visão mais conservadora mas acho que queremos o mesmo. A única forma de manter certas partes da cidade é fazendo cedências. Acredito que a cidade tem que se reinventar nos próprios sítios. Significa que temos de proteger o património, mas temos de ser muito criteriosos sobre o que é património. O Governo talvez dê bastante primazia a edifícios neo-clássicos, como o Leal Senado, mas há outras partes dessa cidade mais autónoma, até autoconstruída, que também tem muito interesse. E numa cidade que está sempre em mudança, os registos são ainda mais importantes, porque eu acredito que é impossível congelar a cidade que existe.

– Como imaginam Macau daqui a 10 ou 20 anos?

J.N.M. – Vai ser como qualquer outra cidade chinesa, como Zhuhai. Sei que a China tem uma abordagem, em certas zonas históricas, com uma preocupação evidente e uma reabilitação feita com com muito primor. Espero que Macau seja uma das cidades em que o património é valorizado.

– Que medidas podem ser tomadas para preservar o património sem comprometer o desenvolvimento?

S.N. – A palavra-chave é critério. Não podemos simplesmente demolir tudo ou congelar a cidade no tempo. Precisamos de estudar cada edifício e perceber o que deve ser preservado e o que pode ser transformado. Além disso, a sociedade tem um papel importante. As pessoas precisam de valorizar os edifícios históricos, porque se não houver esse reconhecimento social, dificilmente haverá vontade política para os proteger.

J.N.M. – Não se trata apenas de preservar o passado. Também devemos ter critério no que estamos a construir no presente. O que estamos a construir hoje será o património do futuro.

 

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