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“Macau é uma peça incontornável”

Fátima Papelo, professora de relações internacionais na Universidade Joaquim Chissano, em Maputo, esteve em Macau ao abrigo de um intercâmbio com a Universidade de Macau (UM). Aqui descobriu o “centro” das relações entre a China e os Países de Língua Portuguesa (PLP). E agora acredita que “Macau vai exercer um papel fundamental no estreitamento de laços entre Moçambique e China”

Paulo Rego

– O que Macau antes significava para si; e em que medida parte com outra perspetiva?

Fátima Papelo – Fiz mestrado em Diplomacia e Direito de Negócios e doutoramento em Estudos Estratégicos Internacionais e, nas minhas pesquisas, olho para as relações de África com a Ásia, a América, e a Europa, que ligou todos esses continentes. Nas aulas de História das Relações Internacionais, há quase dez anos menciono Macau aos meus alunos, porque exploramos diferentes momentos em os países europeus estiveram na Ásia. Há o momento em que o Reino Unido encontrou a China; depois a França; a Alemanha… Mas também o momento em que Portugal encontrou a China – e deixou marca. Estou cá pela primeira vez; é a minha estreia na China. É uma experiência interessante; porque, uma coisa é ler, outra é viver.

– Na década de 1960, o Partido Comunista Chinês (PCC) apoiou a independência de Moçambique, promovendo também relações comerciais, inclusive através de Macau. Como olha a Academia moçambicana para essa relação?

F.P. – Existem várias perspetivas. A mais antiga é a do primeiro encontro entre a China e África; muito antes de existir o PCC. A China foi uma das civilizações que desenvolveu a navegação e um dos lugares a que chegou foi Moçambique. Entretanto, os navegadores chineses recuaram e tiveram os seus navios destruídos; mas esse foi o primeiro contato entre os povos moçambicano e chinês. Muito mais tarde, os portugueses ocuparam o território moçambicano; e, muito depois, surge a consciência nacionalista e a luta pela autodeterminação. É aí que falamos do PCC. A Academia moçambicana dá mais ênfase a esta segunda perspetiva, em que o PCC apoia o objetivo político da independência; mas não deixamos de mencionar que as relações entre os povos começaram muito antes.

– O que representa hoje a China nas múltiplas relações de Moçambique?

F.P. – A relação entre Moçambique e a China é hoje muito forte; desde logo por causa desse histórico de libertação. Desde 1975, ano da independência, a China ocupou logo um papel central; e se é verdade que em certo momento houve uma retração por parte da China, é porque que se esteve a reorganizar. A China atua hoje no sistema internacional com muita força; e conta com Moçambique, que abraça positivamente o projeto chinês. Ao nível bilateral, as relações são muito consistentes; e, ao nível multilateral, alinham em diversas plataformas multilaterais, como nas Nações Unidas, onde tomam decisões que não são muito distantes. Pelo contrário, há tendência para estarem sempre do mesmo lado, o que revela apoio – e respeito – mútuo.

A China atua no sistema internacional com muita força e conta com Moçambique; que abraça positivamente o projeto chinês

– Há algum impulso de harmonização da posição dos países africanos de língua portuguesa com a China? Ou a estratégia concentra-se na relação bilateral?

F.P. – Há uma redução do ativismo na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP); e Moçambique faz parte desse grupo de atores que reduzem esse engajamento mútuo. Entretanto, Moçambique encontra os PLP aqui no Fórum Macau, onde demonstra ser muito mais ativo. Contudo, é um espaço criado pela China; pelo que volto à primeira questão: os PLP têm baixo nível de engajamento; por si só não conseguem mover-se de forma criar uma força, um bloco com posicionamento e objetivos claros. O último ponto de discussão foi o acordo ortográfico; que ficou no vai e vem – incerto e indeterminado; não conseguimos encontrar outras agendas. Já no Fórum Macau, os objetivos são claros e os estados sabem o que estão a fazer; mas olho para esse espaço e, pelo pouco que já pude ver, é guiado pela China; não é um espaço de autonomia plena dos estados que dele fazem parte. É positivo que se encontrem e tenham oportunidade de fazer o que não fizeram na CPLP; o que não estão a conseguir fazer. Mas é necessário ter em conta que, nesse espaço, devem respeitar quem o criou; aspeto que limita a atuação desses países.

– Veio a Macau sobretudo experienciar esta realidade; ou também transmitir visões da sua universidade e do seu país?

F.P. – A partir do momento em que saímos do nosso habitat, estamos dispostos a uma realidade distinta, com aspetos positivos e negativos. Antes de vir, ouvi muitos aspetos positivos sobre Macau e a UM; que, aliás, comprovo. Das facilidades existentes, aos recursos disponíveis, é uma diferença abismal em relação à minha realidade. Mas também há aspetos comuns, pelo menos na área de relações internacionais, onde temos a vantagem de falar a mesma linguagem. Ao interagir com estudantes e pesquisadores, sinto que não estou perdida. Mesmo estando em desvantagem, em termos de recursos; em termos do conhecimento estamos na mesma base, usamos as mesmas ferramentas. Tive a oportunidade de acompanhar os trabalhos de pesquisa de alguns estudantes e o feedback deles foi muito positivo; o que significa que estou em condições de orientar estudantes em Moçambique, Macau, ou qualquer parte do mundo. Se temos conhecimento estamos aptos a aplicá-lo em qualquer espaço; senti isso aqui. Falei com estudantes de Macau e da China, apresentei uma perspetiva de Moçambique, uma visão africanista; valor que agregam ao conhecimento que têm. Vim na expectativa de aprender, mas também contribuí; e isso é maravilhoso.

A perspetiva africanista é a de que temos de olhar para o mundo com lentes de análise próprias, porque as dos outros não cabem perfeitamente em nós

– Qual é a perspetiva africanista?

F.P. – É a perspetiva de um povo que chega tarde às relações internacionais; tem uma História que não pode ser ignorada, mas que, por conta dela, teve acesso à informação muito mais tarde. Não partimos da mesma linha; há quem tenha começado a correr muito antes.

– Correm para recuperar esse atraso?

F.P. – Não é a questão de recuperar. Digo em Moçambique que somos um bébé que nasceu e tem de andar; nem teve espaço para gatinhar e já tem que andar – e correr. Temos que fazer tudo a dobrar, e dar resposta às exigências atuais. A perspetiva africanista é a de que temos de olhar para o mundo com lentes de análise próprias, porque as dos outros não cabem perfeitamente em nós. Estamos num mundo em que, principalmente nas relações internacionais, a produção científica não é criada em África. Então temos que perceber como o conhecimento é produzido, mas também produzir com qualidade, de acordo com padrões mundiais. É complicado, mas temos vantagens: se vivemos a nossa realidade, temos uma perspetiva distinta de quem não a vive, mas acha que sabe. Muito do conhecimento hoje tem o ponto de vista britânico, francês; até da China, que está a produzir bastante nesta área. Temos a tarefa de produzir muito mais; processo em que a nossa perspetiva local estará sempre presente.

Olhava para Macau como uma antiga colónia de Portugal na Ásia; mas hoje vejo que Macau é muito mais: é centro, ponto de conexão entre China e os PLP

– Qual é o foco do paper académico que esteve aqui a preparar?

F.P. – Estou mesmo a finalizar um paper sobre as relações diplomáticas entre Moçambique e China. Foi intenso, e interessante fazê-lo em Macau, porque a minha perspetiva alterou-se em função do espaço. Uma coisa é pesquisar estando em Moçambique, longe de uma das realidades; outra é a experiência de Moçambique associada à de Macau, que muda por completo a minha visão sobre as relações entre os dois países.

– Que nova perspetiva descobriu em Macau?

F.P. – O foco principal é Macau ser porta para a China. Olhava para Macau como uma antiga colónia de Portugal na Ásia; mas hoje vejo que é muito mais: é centro, ponto de conexão entre China e os PLP; e Moçambique faz parte desse grupo. É verdade que temos representação diplomática em Pequim, mas Macau traz esta identidade única que tem de ser maximizada. Acima de tudo, acredito que vai exercer um papel fundamental no estreitamento de laços entre Moçambique e China. Macau é uma peça incontornável.

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