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Fantasias tóxicas

João MeloJoão Melo*

Cresci a apreciar ficção e divulgação científicas, a divertir-me com desenhos animados mas a ter consciência de que se me atirasse de um penhasco não ficava achatado e seguia em frente, como o coiote do Bip Bip.

Lembro-me na minha infância de uma notícia em que um miúdo japonês se atirou da janela vestido à Super Homem julgando que voava, um sintoma de confusão entre ficção e realidade. Essa confusão, exótica em países menos desenvolvidos como o Portugal do Estado Novo, hoje tornou-se norma. Outro dia sozinho em casa alheia fiz um zapping por duzentos e tal canais de TV, nem a RTP 2 se aproveitava, acabei por me prender ao canal História. Sei que o seu objectivo é vender entretenimento, misturando História com fantasias e mitos medievais tão ao gosto do público actual; sei igualmente que as reacções da comunidade científica à programação oscilam entre o desdém e a irritação, sendo os alienígenas um dos temas de maior controvérsia.

Já testemunhei duas observações de ovnis (objectos voadores não identificados), uma pessoa próxima e seus familiares observaram outra. Gostaria de ter ocupado o tempo em frente ao ecrã adquirindo conhecimento porém não o divisei no conteúdo deste canal que não busca saber, antes difunde convicções. O objecto dos extraterrestres foi explorado de modo a afastar a curiosidade de quem de facto a tem, os devaneios e conclusões a que chegaram desmotivam quem observou fenómenos extraordinários, inquina o estudo do tema. Admito ser difícil reunir material e testemunhas disponíveis para encher temporadas e temporadas de programas, factos disponíveis acompanhados de imagens não abundarão; assim, como se ocupam anos de episódios com tão escassa matéria-prima? Cria-se. Criativo também sou, obrigado, o que preciso é da perspectiva científica. Não tenho nada contra a especulação contudo a deste assunto torna-se perniciosa, pior que ficção, aliás pior que uma discussão numa tasca, liga-se e desliga-se do método científico conforme lhe dá jeito. A perspectiva dos assuntos ali tratados inclina-se para o viés mais conveniente onde a ciência é uma vaca leiteira usada ao gosto do freguês; se umas vezes ela serve para chancelar a credibilidade das alegações (“o Dr Fulano afirmou X, exactamente aquilo que defendemos”), quando ela não consegue responder colocam-na em causa, desconfiam que a comunidade científica sabe mais do que diz, uma atitude habitual no apedeutismo. Pois, quanto maior a ignorância menor a capacidade de lidar com a incerteza, as dúvidas da ciência e a gnose acumulada até hoje são intranquilizadoras, tem de haver algo mais que transmita segurança, reforce convicções, dê sentido à vida; eis o que move estes “investigadores”.

Quedei-me a ver dois episódios da série “Alienígenas”, tentei manter-me de espírito aberto mas o pensamento crítico ia-se revelando um obstáculo a cada “bomba” lançada, no geral o programa resume-se a um auto de fé. O primeiro episódio falava do famoso mapa elaborado por um cartógrafo otomano em 1513 de seu nome Piri Reis; nas inscrições à margem do documento o autor revela ter usado mais de duas dúzias de mapas, incorporando informação de variadas fontes com origem em tradições europeias e do Médio Oriente. Sobre isto os “investigadores” perderam-se em considerações de que o mapa teria sido transmitido por extraterrestres, só eles disporiam de tecnologia para ver a Terra do espaço e até mostrava com rigor os contornos da Antártida com fauna e flora numa fase anterior à era glacial e à fixação do continente no Pólo Sul coberto de gelo. Soltei uma gargalhada: contornos exactos? Então porque a Antártida é representada como a extensão da América do Sul quase fechando-se num mar interior? Quem conhece mapas da época sabe que a geografia tradicional misturava-se com a lendária, era comum embelezarem-se terras desconhecidas com hipotéticas flora e fauna. Apresentaram provas ou contraditório? Ouvem-se os grilos no meio da erva, as únicas fauna e flora que detectei… Querem saber as indicações que a terra austral (Antártida) tem no mapa? “Neste país parece que há monstros de cabelos brancos nessa forma, e também bois de seis chifres. Os infiéis portugueses escreveram nos seus mapas”. Oh pá que decepção, o autor não só assume que a informação lhe chegou pelos portugueses como honestamente utiliza o termo “parece”, a modos que a descartar-se da responsabilidade de tais afirmações, ele simplesmente copiou o que os infiéis escreveram. Terão os cartógrafos do reino ibérico sido visitados por extraterrestres? Bem, se vale divagar à parva diria que os portugueses escreveram isso nos seus mapas para que ninguém lá pusesse os pés antes de termos interesse, disponibilidade ou meios para o fazer; hein, que tal?

Costumo usar um método que me tem ajudado na vida, o da “navalha de Ockham” conhecido como “princípio da economia”: em múltiplas explicações adequadas possíveis para o mesmo conjunto de factos, deve-se optar pela mais simples. As teses de Ptolomeu, cientista da antiguidade clássica, estavam em voga no Renascimento e na sua concepção do planeta os oceanos encontravam-se rodeados de terra; pressupunha igualmente um grande continente a sul porque sentiu necessidade de “equilibrar” a Terra. A conjectura provou-se errada, afinal a massa continental está “desequilibrada”, no hemisfério norte 41% é terra e no sul apenas 17% fica acima do nível dos oceanos. Sim, ninguém tinha ido à Antártida mas toda a gente no século XVI acreditava num continente a sul, até os portugueses; donde viria essa ideia, da supra-sapiência de extraterrestres ou do modelo ptolomaico? Note-se ainda que o mapa de Piri Reis resume-se a um fragmento faltando-lhe a metade oriental, é falacioso inferir uma perspectiva do espaço, afigura-se mais sensato seguir a sugestão dada pelo próprio desenho de que o extremo sul do continente americano se feche num mar interior, uma representação que, volto a sublinhar, não está completa. Estamos perante um mapa do tipo portulano (distâncias aproximadas entre portos) indicando as direcções dos ventos, o normal dessa altura. Numa das inscrições o autor conta que usou um mapa elaborado por Colombo para compor os contornos da América; as ilhas das Caraíbas contêm erros, o que não estranha uma vez que o descobridor do novo continente morreu convencido ou a pretender convencer de que teria chegado ao extremo oriente: Hispaniola (Santo Domingo, República Dominicana) aparece orientada no sentido Norte-Sul como se fosse o Japão, e Cuba está ligada ao continente como se fosse parte da China. Estas incorrecções apontam para que Piri Reis possa efectivamente ter tido acesso a um mapa de Colombo entretanto desaparecido; segundo o seu relato obteve-o de um marinheiro espanhol que acompanhara Colombo à América e foi capturado numa batalha naval ao largo de Valência onde Reis participou com o tio, um corsário de nome Kemal Reis. Vejamos a lógica das reivindicações apresentadas pelos “investigadores”: os extraterrestres transmitiram os contornos exactos da Antártida mas enganaram-se a transmitir os contornos exactos da América? Piri Reis usou a suposta informação alienígena para mostrar a Antártida ligada à América do Sul mas infelizmente desdenhou a precisão de outros eventuais dados recebidos, ou só recebeu dos extraterrestres os relativos à Antártida? Como nenhum dos continentes surge coberto de gelo alegaram que o mapa mostra os continentes antes da era glacial; muito bem, se é anterior à era glacial para onde foi o gelo? Para o oceano, certo? Desse modo como explicam a contradição de afirmarem que os erros das Caraíbas dimanam de uma era de oceanos rasos se nessa era o panorama seria forçosamente o oposto? Não estamos hoje a sofrer as consequências do degelo das calotas polares? O resultado do degelo não é a subida do nível dos oceanos? Claro, nem foram por aí porque se tentassem explicar um oceano raso que contraria a falta de gelo no planeta enveredariam por caminhos tão mirabolantes como os percorridos por quem segue a teoria da Terra plana, um labirinto de equívocos sem suporte experimental. Navalha de Ockam, pessoal… Nada tem ponta por onde se pegue mas o mais grave para mim é desrespeitarem o autor do mapa espezinhando as indicações que o próprio fornece, atribuindo-lhe as suas, característica típica de manipuladores sem vergonha. Para estes a vaca-mapa apenas conta pelo leite que lhes interessa, o “misterioso” continente, aquilo que crêem estar certo, o restante, incluindo o errado, negligenciam. A dimensão do descobrimento da América só se revelaria após a morte de Colombo, em tudo diferente do que alguma vez sonhara; se porventura chegou a ter consciência de que não aportou ao oriente, o homem morreu amargurado pelo falhanço do seu propósito de vida, afinal o que ele descobriu foram umas ilhas a ocidente. Criou a confusão entre índio e indiano que persiste nas línguas europeias, felizmente não no português porque os falantes desta língua sabiam o que andavam a fazer nos mares, e nem o continente que descobriu perpetuou o seu nome, adoptando-se o de quem o cartografou, Américo Vespúcio. Isto é uma comédia trágica, com efeito o protagonista revelou-se um palerma obcecado que esbarrou numa descoberta fantástica mas não tinha forma de a compreender, e até ao fim da vida optou por vender a sua obsessão compondo um mundo à sua medida, o ego ofuscou-lhe a razão. Este programa faz exactamente o mesmo: uns quantos palermas de ego inflacionado por convicções a espalharem balbúrdia, a montarem um universo à sua medida, e ao insistirem em logros podem ironicamente passar ao lado de uma descoberta interessante. Compreende-se, o mais importante é vender uma ideologia.

O segundo episódio gira em torno de uma cara que alguém viu numa vista aérea algures na Europa. Tempo e dinheiro gastos em “investigação”, modelos 3D para conferir volumetria ao perfil, a “investigadora” a apontar os contornos no ecrã do computador e lentamente, alimentados pela fé dos apresentadores os espectadores vão vislumbrando a forma oblonga da cabeça do faraó Akhenaton ou, claro, de um extraterrestre. Ahhhh, tal e qual… E isso quer dizer o quê? Entretanto ninguém se lembrou de mencionar a pareidolia, um fenómeno psicológico que faz com que tendamos a descobrir olhos, bocas, faces no meio do caos, atávico instrumento de sobrevivência da nossa espécie. Farto de disparates desisti, ia a desligar a meio do episódio e já se atiravam à “cara” de Marte, naturalmente não poderia faltar esta, uma foto dos anos 70 das missões Pioneer que fotografias recentes provaram resultar do jogo de luz e sombras. Fogo, seria tão “fixe” se fosse verdade… mas não é. Até uma pessoa católica devota se riu quando descrevi aquilo a que assistira, ela que confessou em criança descortinar formas e figuras nas nuvens, ficando a sonhar com elas, fantasia pura e simples. No fundo cada um vê o que quer, munido da predisposição para tal também consigo ver desde ETs até à Virgem Maria na espuma do galão.

Os mitos e lendas sempre nos acompanharam, a diferença para o passado é que hoje são amplamente divulgados. Eu não tenho interesse nos demónios que habitam a cabeça de cada um, gostava era de perceber melhor o universo, mas vai sendo difícil ouvir a razão no meio do ruído provocado por tanta emoção de leigos e crentes. Apesar disso a ficção é uma coisa, pseudo ciência é outra, e por massificarem perspectivas fantasiosas de “investigadores” sem método científico estes programas desviam o foco do que é realmente interessante, desinformam, executam lavagens cerebrais em mentes pouco críticas reforçando convicções, contribuindo para a ignorância e confusão do mundo, numa palavra são prejudiciais, perigosos até. Depois há quem estranhe eu preferir na TV ver jogos de futebol; pelo menos é um passatempo vazio, não me intoxica, proporcionando boas e estéreis discussões em tascas.

*Embaixador do Plataforma

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