
São sempre controversas as restrições de entrada a nacionais ou residentes de um país ou região, independentemente das razões que as despoletam. Na verdade, se uma pessoa é cidadã, nacional ou residente com equivalente estatuto e se o seu próprio país ou região lhe impede a entrada, quem irá admitir tal pessoa? Atualmente os apátridas são raros e são de louvar as regras internacionais que para tanto têm contribuído.
Emitido em outubro de 2021 pelos Serviços de Saúde da RAEM, o Anúncio 171/A/SS/2021 travou todos aqueles que, residindo, trabalhando e tendo o centro da sua vida na Região Administrativa Especial de Macau (“RAEM”), sofreram o infortúnio de terem sido infetados com o vírus Covid-19 durante a sua estadia fora da Região. A utilização da designação de infortúnio deve-se ao facto de poucos serem infetados por sua livre e espontânea vontade.
Lê-se no referido anúncio que quem tiver sido infetado com Covid-19 apenas pode embarcar em aviões civis com destino à RAEM, no mínimo, 2 meses após a manifestação da doença ou do primeiro teste da Covid-19 com resultado positivo, e deve obrigatoriamente apresentar o certificado de recuperação de Covid-19.
Várias questões surgem da leitura atenta do anúncio, quer formais, quer substanciais.
Na verdade, não se encontra previsto nas fontes normativas elencadas na Lei n.º 13/2009 o tipo normativo “anúncio”. Nos termos do disposto no artigo 24º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, cabe ao Chefe do Executivo, por despacho que deverá ser publicado no Boletim Oficial, determinar a aplicação ou o levantamento de medidas especiais. Ora, o anúncio em análise não reveste a forma de Despacho e não se afigura ter sido publicado no Boletim Oficial, requisito de vigência e condição de eficácia, nos termos da previsão legal do artigo 5º da Lei nº 3/1999, alterada pela Lei nº 20/2021.
Do lado substancial, estudos científicos concluíram que um dos maiores benefícios das vacinas é o aligeiramento dos sintomas. Numa altura em que há países que atingiram taxas de vacinação de 80 a 90 por cento, está comprovado que a maior parte dos seus cidadãos não sofre de sintomas graves. Assim é possível que uma pessoa seja infetada por Covid-19 e não tenha qualquer sintoma. Se tal acontecer, a probabilidade de a pessoa fazer um teste sem motivo é reduzida. Num caso hipotético em que uma pessoa não tenha qualquer sintoma e pretenda viajar, apenas fará um teste para poder embarcar num voo. Começarão os 2 meses a contar desse teste? Não estará a pessoa já curada aquando da realização desse teste? São respostas não contempladas na previsão genérica e simplista de “2 meses após a manifestação da doença ou do primeiro teste da Covid-19 com resultado positivo”.
Por outro lado, pode ler-se no acima referido anúncio que lhe serviram de base os artigos 10º e 12º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis. As referidas disposições legais contemplam a possibilidade de exigência, por parte das autoridades da RAEM, de declaração do estado de saúde a quem cruza os postos fronteiriços da RAEM e a obrigatoriedade de comunicação às autoridades competentes por parte dos responsáveis pelas aeronaves, navios ou veículos rodoviários que transportem pessoas infetadas ou suspeitas de estarem infetadas (no caso do artigo 10º) e a possibilidade de tomada de medidas de quarentena, observação e exames médicos, restrições ao exercício de certas atividades ou profissões a “pessoas infetadas, suspeitas de terem contraído ou em risco de contraírem doença transmissível” (no caso do artigo 14º). Ora, nenhum dos preceitos descritos como base legal para o Anúncio 171/A/SS/2021, emitido pelos Serviços de Saúde, contemplam a possibilidade de impedir a entrada a residentes. Ainda em prol de tal tese, saliente-se que o artigo 25º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, contempla, taxativamente, as medidas de restrição de entrada na RAEM, todas elas aplicáveis a não residentes. Aliás, a este propósito, poderá também ser citado o disposto no artigo 33º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, que concede aos residentes de Macau a liberdade de “viajar, sair da Região e regressar a esta”.
A Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis dispõe que as medidas nela previstas devem pautar-se pelos ditames da necessidade, da proporcionalidade e da adequação aos objetivos propostos.
No que à necessidade concerne, contribuirá tão significativamente a restrição de entrada a residentes que já adquiriram imunidade através da doença para a prevenção epidémica, sabendo que tais residentes cumprirão uma quarentena de 28 dias de isolamento, acrescidos de 7 dias de autogestão de saúde?
Dispõe o princípio da proporcionalidade, que é transversal a todos os ramos do Direito, que a medida restritiva tomada deverá ser proporcional ao bem a proteger. Proteger a comunidade é sem dúvida o objetivo da medida, no entanto, será esta proporcional? Em termos simplistas, será a restrição do acesso à residência e à profissão uma medida proporcional à defesa da comunidade?
Relativamente à adequação aos objetivos propostos, sempre se dirá que não há meio mais eficaz de travar a pandemia do que vacinar, vacinar, vacinar! Neste sentido, a probabilidade de uma vacinação total da população ser uma medida (bem mais) adequada ao objetivo de prevenção epidémica é bastante alta e deveria ser considerada.
Aponta ainda a referida Lei, como pedra basilar da aplicação de medidas, o respeito pelo Princípio da Não Discriminação. Pode ler-se no artigo 26º da Lei que “Nenhuma pessoa pode ser discriminada na sua escolaridade, emprego, escolha de domicílio, aquisição de serviços, entre outros, em razão de ter sido infetada, suspeita de ter contraído ou em risco de contrair doença transmissível”. Proibir a entrada de residentes pelo facto de os mesmos terem contraído a doença, parece não ter em conta tal princípio.
Em suma, concluímos que haverá eventualmente meios bem menos gravosos de prevenção epidémica além da proibição de entrada de residentes na RAEM; acresce que não parece ser um Anúncio, por mais importante que seja o seu conteúdo, o meio idóneo para impedir residentes de Macau de entrarem na sua Região.
*Advogada do escritório Rato, Ling, Lei & Cortés (Lektou)