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O medo do silêncio

João MeloJoão Melo*

“O silêncio é a comunhão de uma alma consciente consigo mesma” – Henry David Thoreau, naturalista, ensaísta, poeta e filósofo.

A condição essencial para haver música é o silêncio; quer o mote seja criá-la ou escutá-la, a música define-se por uma sequência intencional de sons estabelecida sobre o silêncio. Imaginem uma folha em branco, isso é o silêncio; fazer música é escrever nela. Os requisitos para ouvi-la são semelhantes, necessitamos de um estado silencioso de maneira a que os sons ocupem o espaço em branco; se a escuta tiver a concorrência de outros sons a música passa a ser ruído, ainda que o seu volume se sobreponha ao resto, será como ter na folha textos amontoados em tipos e tamanhos de letra diferentes, uma confusão. Actualmente ouve-se música nestas condições, há quem se afaste da poluição sonora envolvente escutando-a com auscultadores, há quem obrigue os demais a partilhá-la, piorando a qualidade ambiental. A diferença do silêncio para o ruído é igual a olhar o céu à noite num meio urbano ou fora dele; sem a interferência do halo luminoso produzido pela actividade humana notamos milhares de estrelas na abóbada celeste que na cidade parecem não existir. Entretanto o suporte musical ganhou mobilidade expandindo-se para automóveis, telemóveis, colunas portáteis… Nem vou discutir o gosto musical de quem condiciona o meio com as suas escolhas, até podia apreciar o que difundem, a minha questão é outra.

O desrespeito que existe pelo silêncio é uma consequência do desrespeito que as pessoas têm para consigo próprias. E qual é o origem desta falta de respeito? O medo. Medo de quê? Da folha em branco, da noite estrelada. O silêncio convida a pensar, a meditar, e se há coisa mais assustadora para as sociedades actuais é isto. Aferrou-se um genuíno receio de nos ligarmos a nós mesmos, confrontarmos os nossos demónios, todavia os demónios não são necessariamente maus, só no ocidente essa visão está enraizada, no oriente os demónios consideram-se amigos que ajudam a compreendermo-nos. Não ter consciência de si vai esvaziando o propósito do ser, acaba-se a existir para as funções básicas, como animais. É o medo que faz um cão abanar a cauda para o lado esquerdo enquanto ladra, está a avisar quem chegou demasiado perto que o receia, é melhor afastar-se senão ataca. Organicamente semelhantes porém intelectualmente mais sofisticados, os humanos justificam a fuga à auto-consciência com afazeres diários, a luta pela sobrevivência material. Persistir no padrão conduz ao hábito e há várias gerações que somos educados deste modo. Se as pessoas se sentem vazias… cá está para que serve a música, para lhes preencher o vazio, para se distraírem do que são, do que as rodeia, tal como a iluminação nocturna serve não só para vermos melhor mas também para aliviar o medo do escuro.

A música deixou de ser uma ligação ao sublime, agora o único propósito é distrair, esquecermo-nos de nós. Esta é a lógica do show business, a generalidade das produções musicais da actualidade que o musicólogo Roland de Candé chama de “música de variedades”. Alguns protagonistas desta lógica sabem que não produzem arte, criam um objecto de uso descartável cujo fim é entreter, os restantes vivem na ilusão de produzir arte e acham normal confundir o objecto com o criador, foram instruídos assim, nem percebem a diferença. Uma coisa é sabermos quem é o progenitor, conhecermos o ADN da obra, outra é ela só ser relevante por causa de quem a criou; se não tiver autonomia é uma obra menor, infantilizada, deficiente. Idealmente o criador seria apenas um mensageiro do inefável, e a sua criação sim, deveria merecer destaque, mas se o tiver só devido à presença constante do criador significa que a obra não merece atenção, é aquele quem necessita dela, efectivamente o verdadeiro destinatário da mensagem que alega transportar para outrém. A popularização do acesso aos meios de criação e execução alargou a quantidade e aparente brilho de produções musicais, contudo paradoxalmente tem-se a impressão de serem piores que dantes, como a fruta, hoje tem melhor aspecto mas menos sabor. Isto deve-se a um número cada vez maior de criadores crescidos em ambientes de ruído, desligados de si, acostumados a atestar a sua vida de sons para fugirem ao vazio interior, criando obras desprovidas de propósitos elevados. Na cacofonia de vulgaridade em que estamos mergulhados, quem se destaca é quem faz mais barulho ou mais “aparece nos meios de comunicação”. Infelizmente até o propósito recreativo fica em causa porque se nos sentimos vazios e a música que escutamos é feita por pessoas tão vazias como nós, acabamos num círculo vicioso de euforia-depressão, o ecossistema ideal para alimentar a sociedade de consumo. É isto que sucede quase sempre, raros procuram temas ou linguagens com as quais não estão familiarizados, e depois ainda têm inculcado o conceito de que a distracção não pode incluir conhecimento, tem de ser um passatempo estéril para “desentediar o espírito”, algo que os faça apartar de si. Lembra-me um episódio dos Simpsons em que Bart foi a uma loja de jogos, entusiasmou-se a experimentar um mas subitamente largou-o zangado quando percebeu que a violência do jogo era um isco para captar jovens, o propósito final era educativo; sentiu-se enganado por estar a aprender, entre outras coisas, os nomes das capitais dos Estados americanos…

Na próxima sexta-feira 1 de Outubro celebra-se o Dia Mundial da Música. Para comemorar condignamente o dia propunha 24 horas sem música incidental nos elevadores, centros comerciais, etc. Evitaríamos ouvi-la em telemóveis ou leitores de mp3, promovendo a interacção com o ambiente; se o ambiente fosse agradável talvez percebêssemos como temos andado a fugir dele, se fosse desagradável talvez percebêssemos porque temos andado a fugir dele. O smartphone ficaria no modo silencioso, aquilo que pratico diariamente. Este objecto é uma entidade narcisista exigente, chupadora de atenção, mas sem os sonzinhos avisadores do quão importante ele é, deixa de nos controlar, reduz-se à sua utilidade. Os filmes e séries seriam exibidos sem música; se o protagonista à beira de sentir a maior emoção da sua vida não tivesse o apoio de uma música dramática talvez a emoção soasse banal, e talvez se percebesse que a música é muito mais importante do que julgamos, não o parente pobre do audio-visual. Podia ser que ao fim do dia concluíssemos que ouvir música é um pouco como os doces: se forem comidos moderadamente apreciamo-los, se forem comidos a toda a hora tornam-se numa mera matéria-prima de sustento de um vício. Enquanto não apagarmos as luzes nunca veremos as estrelas, enquanto não nos escutarmos primeiro nunca ouviremos música, nem que passemos 24 horas a absorvê-la.

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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