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“A biblioteca está a arder”

Catarina Brites Soares

O português Luís Ceríaco ganhou uma bolsa da National Geographic Society para mais um projeto sobre biodiversidade na Lusofonia, desta vez em Angola. Ao PLATAFORMA, o biólogo, que na última década descobriu quase 30 espécies novas, fala da importância da investigação no terreno. É ali, alerta, que pode estar a solução de muitos males. Isto se a Ciência conseguir chegar antes da ação humana.

A bolsa da National Geographic Society, que acaba de vencer, permite-lhe fazer as malas de novo e voltar a Angola para continuar o trabalho de levantamento e conservação da biodiversidade a que se dedica desde 2012. O projeto deverá arrancar no final do ano e junta uma equipa multidisciplinar de quase 10 investigadores angolanos, portugueses, norte-americanos e alemães dos campos da Botânica, Entomologia, Herpetologia, Ornitologia e Mamalogia.

“A bolsa dá-me a oportunidade de montar uma equipa que de outra forma seria impossível, tendo em conta a falta de recursos, e explorar uma área muito remota”, explica. “Ter o selo da National Geographic Society traz uma projeção muito maior. É totalmente distinto fazê-lo por nós próprios ou com fundos das universidades, como aconteceu nos últimos dez anos, ou com este apoio”, acrescenta.

A incursão será no Sul de Angola, na Serra da Neve, uma montanha com cerca de 2.500 metros de altitude que se destaca na paisagem desértica com apenas 500. “É uma região muito pouco explorada. Nos dois trabalhos preliminares de subida, encontrámos espécies novas, o que nos leva a acreditar que há bem mais por descobrir”, antecipa Luís Ceríaco, investigador e curador do Museu de História Natural e da Ciência, da Universidade do Porto.

O levantamento da biodiversidade – continua – vai incluir plantas, aves, insetos, anfíbios e réptéis, e por isso permitir criar uma base de informação que será depois usada pelas autoridades angolanas para projetarem uma área de conservação.

Entre os vários contributos que a descoberta de novas espécies implica, Ceríaco indica desde logo o do conhecimento. “As espécies que estão por descrever têm milhares de anos. Uma espécie que existe atualmente é uma sobrevivente, quer dizer que encontrou uma estratégia de vida que lhe permitiu chegar aos dias de hoje. É um património evolutivo que temos”, detalha, para depois acrescentar: “Ao conhecermos as suas caraterísticas, tiramos informação que pode ser útil nos mais diversos âmbitos como o da arquitetura, ciências biomédicas, indústria farmacêutica. Quem sabe se em algumas destas espécies não há um composto químico que vai ser usado na luta contra doenças que nos afetam como o cancro e a Sida”, diz. “Uma espécie é um livro na grande biblioteca que é o nosso planeta”, assinala

Luta contra o tempo

Há um problema, avisa: “A biblioteca está a arder”. Socorrendo-se da metáfora, alerta que é urgente salvar todos os livros possíveis. “Imagine-se que não lemos um livro onde está a resposta para um grande problema”. O desfecho é cada vez mais provável dada a extinção veloz das espécies por causa da ação humana, lamenta. “Ainda não sabemos tudo sobre os ecossistemas e tudo o que ali se passa, afeta-nos. Se não soubermos os componentes principais destes ecossistemas, desconhecemos como a extinção de uma espécie nos pode atingir. Além de outros, há um interesse antropológico”, sublinha.

São vários os obstáculos à descoberta e conservação da biodiversidade que aponta, como as alterações climáticas. Mas, há mais. “Quando digo que a biblioteca está a arder refiro-me também à destruição e alteração dos habitats, poluição, uso excessivo dos recursos e às espécies invasoras. A combinação de todos estes problemas, e a um nível cada vez mais grave, faz com que tenhamos uma grande percentagem das espécies ameaçadas e boa parte ainda nem conhecemos”, lembra.

O contexto de pandemia ajuda a que se perceba a gravidade do que denuncia. “É mais um resultado claro da nossa intervenção desregulada e pouco pensada na Natureza. Enquanto continuarmos a destruir habitats que eram virgens e a metermo-nos onde não devíamos, vai continuar a haver doenças como esta”, garante.

Para ilustrar o que atesta, recorre ao território que conhece e explica que nos países lusófonos – “muito ricos em biodiversidade pela geografia e pouco conhecidos” – o perigo não reside na ausência de meios humanos e materiais que permitam a proteção da fauna e flora, mas sim no grande crescimento populacional. “Há mais pressão sobre os recursos e Angola é um desses casos”, refere.

De olho na Ásia

Esta será a 19.ª expedição ao país. Das 27 espécies que já descreveu, a maioria foi em Angola, entre outros territórios como Portugal, São Tomé e Namíbia. “Muitas vezes, quando pensamos em Ciência Moderna esquecemos que não se faz sem a investigação de campo. Esta prática não pode desaparecer porque é daqui que tiramos a informação básica para que no futuro e nos laboratórios de alta tecnologia se façam os grandes estudos. Não nos podemos esquecer que na base da ciência moderna ainda está a história natural e as expedições”, defende.

Além de Angola, Luís Ceríaco também tem projetos de preservação da biodiversidade em São Tomé, que quer alargar à Guiné-Bissau e a Moçambique. “Basicamente, tenho estado a trabalhar nos países de língua portuguesa e assim planeio continuar”, afirma. “Claro que a afinidade linguística, cultural e histórica influenciou que me centrasse nesta geografia, mas tal também se deve ao facto de a História Natural ser interminável e que um biólogo acabe por continuar o trabalho de outros cientistas. Sendo português, acaba por ser normal o enfoque na Lusofonia porque outros naturalistas portugueses trabalharam muito estas zonas”, esclarece.

No horizonte está também a Ásia lusófona, para onde tem ambições. “Gostava muito de fazer trabalho em Timor, uma das zonas menos conhecidas. Mas, já fiz projetos para aí. Trabalhei em exemplares de Macau. Uma das coleções mais importantes de répteis e anfíbios da região está em Lisboa, no Museu de História Natural, e chegou para me dar uma ideia do que existe nessa zona e vontade de dar um salto a esse lado”, revela. “A Ásia é das zonas mais ricas em termos de biodiversidade. O número de espécies que está a ser descrito aí é muitas vezes superior ao do resto do mundo junto. Mas por enquanto, conto ficar por aqui”, assume.

O cientista, de 33 anos, acumula várias histórias e partilha uma que o marcou especialmente sobre a Cobra Preta – espécie de dois metros e venenosa, icónica em São Tomé, dos locais onde mais tem trabalhado. “Era uma certeza absoluta que era igual às cobras pretas que existem no continente africano e que tinha sido levada para lá pelos portugueses para controlar os ratos nas plantações de café e de cacau. Mas essa história não me fazia muito sentido. Entre outros motivos, porque estávamos a assumir que os portugueses do século XVI tinham uma consciência ecológica que os do século XXI não têm. Combinámos três elementos completamente diferentes – genética, morfologia e a consulta dos primeiros documentos históricos dos portugueses quando chegaram, e descobrimos que era uma espécie única na ilha”.

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