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Controlar a epidemia só com vacinas

Catarina Brites Soares

Médicos de Portugal, Moçambique, Brasil e Cabo Verde falam dos riscos da vacinação contra a Covid-19, mas concordam que é a única solução para o mundo recuperar. Esperam também que a pandemia tenha servido de lição de que a saúde deve estar primeiro. O PLATAFORMA tentou falar com médicos locais que se recusaram a comentar

Macau é único. Se o resto do globo se bate com a pandemia há quase um ano, a região estava livre dela quase ao mesmo tempo. Contava sete meses sem infeções de Covid-19. Voltou a registar um caso importado, na semana passada.

Aqui surgem dúvidas que outros locais nem ousam pensar. Desde logo, se faz sentido vacinar uma população que não está exposta ao vírus.

“Os territórios sem ou com poucos casos estão nessa situação porque há um grande controlo à entrada. A vantagem de ter a vacina é de conseguir que as pessoas retomem alguma normalidade e não haver necessidade dessas medidas restritivas. É nesse cenário que temos de pensar e trabalhar”, defende Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública portuguesa.

Mário Freitas, epidemiologista em Portugal, admira a situação singular do território. “O que Macau fez é notável. Fizeram o nosso sonho, assim como Taiwan e mesmo o Japão, que tem uma mortalidade baixíssima. Houve uma altura que se fazia a dicotomia saúde-economia. Aparentemente, vocês ganharam as duas lutas porque do lado de cá nem saúde, nem economia”, lamenta.

O médico apoia a vacinação e aproveita para ressalvar que o elevado número de casos – como acontece em Portugal, na ordem dos 14 mil diários – não significa maior invulnerabilidade. “Não sabemos qual o grau de imunidade que se adquire em comunidades com um elevado número de casos e a conclusão até vai no sentido contrário. Vemos, por exemplo, que em determinadas regiões do Brasil, que tiveram um número incomensurável de infetados, não era grande”, exemplifica. “A imunidade de grupo custa mortes. Quem a defende não está muito certo das ideias ou é um psicopata”.

Esperar para ver

A vacina foi a luz ao fundo do túnel que tem sido a pandemia, que surgiu em Wuhan e atingiu o resto do mundo a partir de março. Estudos científicos apontam para uma eficácia de cerca de 90 por cento em pelo menos duas das vacinas: a BioNTech e a AstraZeneca, que foram adquiridas pelo Governo local, que já avisou que vai manter as restrições à entrada (VER CAIXA).

“Percebo o Governo de Macau. Não se trata apenas de ter a população vacinada. Não se sabe que tipo de variantes pode contrair quem vem de fora. O que Macau está a fazer parece ajustado, atendendo que atingiu os zero casos”, considera Mário Freitas.

Ricardo Mexia, também epidemiologista, refere que faltam provas de que a vacina logre reduzir a transmissão da doença, mas enfatiza que está provado que diminuiu a severidade e a mortalidade. “Se cobrirmos a população e se não houver complicações mesmo tendo a doença, o propósito da vacina está garantido”, diz.

O médico Albertino Damasceno é mais cauteloso. “Não sabemos absolutamente nada sobre a imunidade da vacina”, aponta o cardiologista em Moçambique. “O facto é que não há experiência prática e nunca uma vacina teve de ser aplicada tão rapidamente e com tão pouca evidência científica”, assinala.

Danielson Veiga, bastonário da Ordem dos Médicos de Cabo Verde, reitera que os efeitos das vacinas da Moderna, da Pfizer e da AstraZeneca atingem os 95 por cento de eficácia, com benefícios para os maiores de 65 anos e com doenças crónicas. “Segundo os investigadores, a Pfizer é eficaz contra a variante inglesa, detetada já em mais de 60 países; e foi certificada que a maioria das pessoas que tiveram Covid-19 registam imunidade de cinco meses após a infeção e que a vacina pode aumentar ou até estender o tempo desta imunidade”, adianta.

O médico ressalva contudo que em África, e em países como Cabo Verde, pode haver dificuldades relativas à logística de transporte, entrega e conservação das vacinas em condições de ultrafrio, e custos. “Ainda é cedo para se poder confirmar quais das vacinas têm mais tempo e maior efeito preventivo. A primeira dose a grupos de risco pode vir a ser uma garantia à população alvo e de alto risco, mas as provisões levantam dúvidas se será garantida a segunda dose”, receia.

Dúvidas e certezas

Damasceno lembra que o vírus tem um ano e as vacinas apareceram há cerca de seis meses. Como prova de que as dúvidas são fundadas, refere as condições dos contratos do COVAX – programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que pretende garantir que pelo menos 20 por cento da população mundial será imunizada contra o novo coronavírus no fim de 2021 e facilitar o acesso às vacinas nos países mais pobres. Moçambique aderiu. “Uma das cláusulas estipula que o Estado não pode pedir indemnizações caso haja efeitos colaterais”, lembra.

Moçambique só deve iniciar a vacinação em junho/julho, quando está previsto que chegue a leva assegurada pelo COVAX. O médico, que integra a comissão técnico-científica que apoia o Governo e o Presidente da República, diz que há outras perspetivas caso se concretizem as promessas da Índia – que anunciou que Moçambique seria uma das prioridades em África para a distribuição da vacina; e da União Europeia – que anunciou destinar os excessos aos países carenciados limítrofes e a África. “De qualquer forma, tudo isto é teoria. Na prática, não há nem uma dose aqui e não vamos começar a vacinar para já”, frisa. “Moçambique é um dos países mais pobres do mundo e se dependesse de nós, se calhar nunca teríamos vacinas”, atira.

O plano está montado e repete as prioridades dos restantes: primeiro trabalhadores de saúde, doentes de maior risco e idosos. “Provavelmente não podemos ir muito além disso, uma vez que os 20 por cento que a OMS garante não o vão permitir”, admite.

Sublinha as reticências sobre as vacinas e desabafa: “Cada vez sei menos da Covid. No início, achávamos que os idosos eram os grupos de risco, hoje morrem pessoas com 30/40 anos sem fatores de risco”.

Custa-lhe conceber alguma normalidade para breve face aos desafios quase diários que o novo coronavírus impõe. “Ter 20 por cento da população vacinada é melhor que nada. Dará mais segurança ao pessoal de saúde, que é escasso. Estamos numa situação em que os setores privado e público estão completamente lotados, isto com 800 casos por dia. Mas 20 por cento não vai mudar muito a situação”, adverte.

Cabo Verde – com cerca de 650 casos ativos, num total de mais de 13.500 infeções de Covid-19 e 124 óbitos desde março – também será abrangido pelo COVAX.

A par disso, em novembro, o Governo comunicou que o país angariou cerca de cinco milhões de dólares norte-americanos do Banco Mundial, e que está a analisar a possibilidade de mobilizar mais 15 milhões a partir da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental com destino à aquisição de vacinas.

“Se pelo menos a importação dos números de vacinas apontados acontecer, e num futuro próximo, for estendido a toda população de Cabo Verde, que são apenas 550 mil, julgo que teremos garantias de um retorno, relativamente limitado, à realidade anterior”, antecipa Danielson Veiga.  

Os grupos prioritários repetem-se, mas o bastonário alerta: “É importante incluir os agentes da Segurança Pública, da Proteção Civil e os bombeiros, como também quem está ligado ao Turismo que garante 25 por cento do Produto Interno Bruto”.

No Brasil, a vacinação será em quatro fases. A primeira – já iniciada – contempla os profissionais de saúde na linha de frente, idosos em lares e os que têm mais de 75 anos, pacientes com deficiências e indígenas. Seguem-se os idosos acima dos 65, pacientes com doenças crónicas e agentes de segurança – que deverão ser vacinados no primeiro semestre. “Creio que o processo será estendido até 2022”, antecipa Mário Maranhão.

O médico brasileiro vinca que, para a primeira etapa, o país dispõe de seis milhões de doses numa população com quase 210 milhões – doses que já foram distribuídas por todos os  Estados e Distrito Federal. “Um adicional de dois milhões de doses são aguardados nos próximos dias, produzidos pela Astra -Zeneca e oriundos da Índia. A demora na entrega de insumos pela China, necessários para a produção de ambas as vacinas, pode atrasar a produção pelo Instituto Butantan, em São Paulo, e pela FIOCRUZ, no Rio de Janeiro. Mas o Governo  afirma que assegurou 350 milhões de doses, da Coronavac e da Astra-Zeneca”, detalha.

As vacinas

No início do mês, o Governo de São Paulo anunciou que os estudos apontaram 50,38 por cento de eficácia geral da vacina Coronavac, da farmacêutica chinesa Sinovac, desenvolvida no Brasil em parceria com o Instituto Butantan.

Questionado sobre a fiabilidade, o médico brasileiro responde: “Acredita-se que a Coronavac é eficaz em 50 por cento, a qual pode ser ampliada para cerca de 70 por cento na prevenção em casos moderados e até em 100 por cento em casos graves, sendo que a da Astra-Zeneca chega a mais de 90 por cento”.

Maranhão afirma que Governo e Ministério da Saúde brasileiros atrasaram as providências para aquisição das vacinas e continuam a tentar adquirir outras vacinas, como a da Pfizer ou a russa Sputnik 5, “tendo investido em medicamentos que não têm respaldo científico, como a cloroquina, ivermectina e azitromicina”.

E deixa um aviso: “A aplicação da vacina não é a solução até que sejam imunizados cerca de 60 a 70 por cento da população. A pandemia irá exigir medidas sanitárias ao longo do ano e mudança do comportamento social das populações. As medidas de prevenção devem ser reforçadas”.

Ricardo Mexia indica que, como em qualquer vacina, o programa deve ser ajustado. “Até mesmo dentro do próprio país ou da região, pode haver priorização de zonas que estão mais afetadas em detrimento de outras se não houver o número de doses necessárias”, indica.

Mário Freitas sublinha que a prioridade deve ser sempre para os mais vulneráveis. “Se vacinarmos os idosos e os profissionais que tomam conta deles, em princípio estamos a contribuir de uma forma decisiva para a redução da mortalidade. É uma obrigação moral e ética. Nenhuma sociedade sobrevive sem as suas raízes. Tomaram conta de nós, merecem e são dignos que façamos todos os esforços para os protegermos”, acentua.

Se o grau de eficácia está confirmado, a efetividade só se vai perceber com um grande grau da população vacinada. “Os indicadores levam-nos a tomar a decisão a nível mundial”, afirma Freitas. Uma pandemia como esta – insiste – só se controla de duas formas: com um medicamento que se tome logo nas primeiras horas da doença ou com uma vacina. “É fundamental que vacinemos muito e rapidamente”, defende.

O médico antecipa que pandemia vá implicar mudanças radicais em tudo, incluindo na forma como nos relacionamos. “Mas vamos dar a volta e a vacina é um primeiro passo. Espero que tenha ficado a lição, sobretudo a quem nos governa, de que não se fazem omeletes sem ovos. O que se percebeu rapidamente a nível mundial é que a generalidade dos países não estava minimamente preparada para lidar com isto”, reforça.

Danielson Veiga, da Ordem dos Médicos cabo-verdianos, concorda: “Hoje não se pode pôr de fora o fenómeno saúde nas previsões económicas mundiais. A pandemia provou isso e está-nos a mostrar as consequências advenientes, se descuidos a este nível voltarem a acontecer”.

O vírus já matou mais de dois milhões de pessoas e contagiou acima de 97 milhões.

MACAU

O Governo local comprou 400 mil doses de vacinas a cada uma das empresas: Sinopharm, BioNTech e AstraZeneca. As primeiras têm chegada prevista para Macau no primeiro trimestre do ano. O plano de vacinação é voluntário e gratuito para residentes, trabalhadores não residentes e alunos não residentes que estudam em escolas do território. Cada residente vai poder escolher a vacina que quer, desde que haja stock. Os regulamentos de quarentena – agora de 21 dias – não serão alterados em Macau, apesar das vacinas contra a Covid-19, e será obrigatória mesmo para quem está vacinado. “Os resultados indicam que a percentagem de prevenção da epidemia é de 80 a 90 por cento e de que irá reduzir o risco de morte, mas isso não significa que todas as pessoas que tomem a vacina não sejam infetadas ou que não haja transmissão da doença para outra pessoa”, argumentam os Serviços de Saúde.

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