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Previsões para 2021

João MeloJoão Melo*

Nas horas vagas sou um estudioso da astrologia da Oceânia, uma antiga arte de prognose desenvolvida pelas populações austronésias. Ora bem meus queridos, 2021 estará sob a influência do signo do ornitorrinco. O ornitorrinco é um mamífero com bico de pato, a prova de que Deus se engana, ao contrário de Trump; e se até o criador do universo cometeu erros não me venham cá pedir indemnizações caso as coisas não vos correrem da maneira que prevejo. Se lerem este texto atentamente verificarão que ao afirmar ser astrólogo nas horas vagas, refiro-me às horas ambíguas, em que não tenho certezas.

Conforme o animal que dá nome ao signo, este será um ano de contradições e absurdos. As condições climatéricas extremas dominarão a natureza, e várias figuras públicas mundiais morrerão durante os próximos doze meses (*). Por uma singularidade astral notável, o natal de 2021 irá calhar a 25 de Dezembro; hum, demasiada coincidência… Em Janeiro o actual presidente dos Estados Unidos, aquele gentleman com o glamour de um talho e assustadora tendência para a asneira, será substituído por alguém. Dando corpo à anunciada fuga de empresas e entidades do Reino Unido, na véspera da implementação do Brexit, o pai do primeiro-ministro britânico pediu a nacionalidade francesa (**). O pai não sei quem é mas mostra ter mais juízo que o filho, o Boris, esse rapaz gordito que parece ter sido atacado por corvos num campo de trigo. Estando agora os britânicos livres de fazer o que bem entenderem, em 2021 o parlamento irá instituir que motos e bicicletas passem também a ter o guiador à direita. Gente distinta. Não me interpretem mal, considero a Inglaterra fantástica, o equivalente ao Algarve antes de chegarem os ingleses.  

Em Portugal Marcelo sucederá a Marcelo; 2021 ainda não será o ano de mudarem as moscas. Na verdade nem a astrologia consegue prever em que altura mudarão, mas se mudasse aquilo onde elas pousam, e que no fundo se constitui da nossa contribuição colectiva, realizar-se-ia uma transformação interessante, ou seja, as mudanças substanciais iniciam-se dentro de cada um de nós. Portugal mantém-se aquele sítio onde os homens velhos têm alma de inspectores, ficando especados a olhar para as obras, e em todo o lado há uma velha de bata e cabelo cortado à pedrada mirando não sei o quê; um bocado diferente das espanholas sempre aperaltadas e carregadas de maquilhagem como se fossem atacar o Batman. Quando Deus misturava os ingredientes para criar os italianos, numa taça à parte juntou menos quantidade de bazófia e auto-confiança; assim nasceram os portugueses. Este ano manter-se-á rara a esplanada sem um cão minúsculo a ladrar estridentemente atado à trela, enquanto a senhora dona lhe fala infantilmente e nos informa que “ele não faz mal nenhum”. Se estas donas fossem obrigados a transportar uma tabuleta a dizer “cuidado com o cão”, seria para não o pisarmos. Nos primeiros meses deste ano, as noites de confinamento continuarão tão tranquilas como o pântano do Shrek antes de ser invadido pelas criaturas fictícias; finalmente estamos a entender que não encontrávamos descanso porque procurávamos onde ele não está. Continuaremos também a assistir ao estranho balanço diário do ano passado: cada vez que sobem os números de mortos e contágios por covid, descem os números de internamentos. Na volta é simples aritmética de merceeiro: os mortos desocupam as camas. 

Após décadas de crescimento, de mercado para supermercado, de supermercado para hipermercado, a crise de 2020 confirmará o definitivo esvaziamento de meios, formas e conteúdos. De modo a evitar filas intermináveis, nesta quadra natalícia decidi fazer as compras deambulando por vilas e pequenas cidades, enquanto altifalantes soltavam no ar vozes imberbes berrando “a todos um bom nataaaaaal”, entrecortadas por anúncios “faça compras no comércio local”. Exausto, ao fim de horas sem ter gasto um cêntimo, descobri que sempre fizera compras no comércio local, afinal este constitui-se quase exclusivamente de cafés, restaurantes, farmácias, lojas de chineses, indianos, animais, modas de há 30 anos, supermercados, papelarias, esteticistas e barbeiros. Se pretender adquirir produtos desligados do factor “sobrevivência” ou “aparar pilosidades” lá terei de voltar aos shoppings onde a oferta é igualmente pobre e tipificada. Quem queira hoje adquirir algo mais específico, somente via internet. As palavras foram perdendo significado perante a intensidade das emoções, poucos respondem a elas sem emojis, “5 estrelas” ou “não há palavras”, e nem foi necessário chegar ao ano novo para se perceber que não haverá “regresso à normalidade”, e não “vamos ficar todos bem”. O regresso ao normal é tão improvável como uma dupla de palhaços se chamar “Gonçalo Coutinho de Bragança e Bernardo Rebelo Noronha”. No natal recebi um sms da minha operadora a dizer “obrigado por estar sempre connosco. Um desejo especial de Bom Natal e Feliz 2021”. Obrigado? Por acaso fui. Para lá de ter assinado um contrato de fidelização, estive anteriormente com as outras operadoras, restou apenas esta e não é melhor, “que remédio estar convosco!” O efectivo teor da mensagem era “agradeça a si próprio ter pago as contas, pois se tentar desaparecer deixaremos de estar consigo e perseguiremos os seus herdeiros até à sétima geração”. E o que é “um desejo especial”? Pode ser do cansaço, da idade, sei lá mas no momento em que leio ou ouço o adjectivo “especial” sei imediatamente que não é; de facto estão-me a informar que não sabem o que dizer. Caros transmissores: por mais que se esforcem em passar genuína emoção, convençam-se de que para o receptor ela não é especial. Estamos conversados?

As grandes produções de teatro e cinema têm os dias contados, no futuro continuará a migração para as TVs e plataformas de stream. Em 2021 nem um musical será estreado, no fim de contas este género é igual a uma peça ou um filme normal só que mais gay e mais caro. É também o único género em que um actor pode entrar em cena a cantar “ó i ó ai o pai morreu atropelado” e todo o elenco se junta em coro; o seu tempo não é deste tempo. Haverá mais uma edição do Big Brother onde um grupo de jovens sonham “ser alguém”, isto é, um desperdício do que já são; provavelmente não se acham nada, e portanto essa atitude convence-me a concordar. O sucesso da música do verão passado escapou-me, conheci-o no final deste ano. Para os mais desatentos informo que o hit é do Toy e o refrão diz “põe a cerveja no congelador e vem fazer amor”. A eventualidade de a garrafa se partir no congelador compensa o esforço de soar a martelada porque não se conhecem quaisquer rimas amorosas para “frigorífico”. Cheguei a pensar “por que raio fazer amor está ligado a uma cerveja”? Se fosse “bijou, mete a garrafa de champanhe no…” mas depois lembrei-me que seria demasiado fino; para o target do Toy o romantismo é regado a cerveja, não a champanhe, ’tá certo. No verão lançará outro sucesso, estou seguro, todavia nem recorrendo ao tarot adivinho a fisgada romântica: “uma adega com vista para os fiordes da Noruega”, “amor, quero pôr uma nota de cem nesse fio dental dado pela tua mãe no natal”, “arreda o tacho, princesa, e vamos fazer mesmo em cima da mesa”? Descobriu-se a vacina para o covid (hip…), os hieróglifos das pirâmides não escondem mais segredos (hip…), porém não será em 2021 que se descobrirá como consegue a Cristina Ferreira ter sucesso e ser considerada sexy (porra!). Se uma mulher que escreveu um livro chamado “Pra cima de puta” vende perfumes com o seu nome, de que jeito poderia eu oferecer um perfume Cristina à minha mãe? Gostaria de associar a minha progenitora a esse cheiro? E por consequência, no que isso me tornaria? 

No final do ano toda a gente publicará ladainhas sobre o quanto desejam ver 2021 pelas costas, depositando todas as esperanças na próxima volta da Terra ao redor do Sol. Na realidade este movimento define a contagem dos anos e isso leva-me a pensar se na perspectiva dos astros, eles não se estarão um bocadinho a cagar para as nossas vidas? Por mim espero não terminar 2021 a ter saudades de 2020. Ah, antes que me esqueça: na astrologia oceânica todos os anos são regidos pelo signo do ornitorrinco.

(*) Nota verídica: este texto foi escrito a 29 de Dezembro, e logo no dia 1 de Janeiro soubemos da morte de Carlos do Carmo. Eis o poder das palavras. 

(**) Aproveitei para acrescentar esta notícia saída a 31 de Dezembro.

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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