O ardiloso sistema de colocação de professores que se vira contra ele próprio, na medida em que não resolve o problema da falta de docentes, tem contornos kafquianos e antecipa, ainda que de forma artificial, o problema real e anunciado da falta de professores na Escola Pública e em todo o sistema educativo.
Os fatores que explicam a falta de professores são vários. Por um lado, o fechamento do acesso à carreira de milhares de professores, contratados há décadas, tornou visível o aumento da idade entre o corpo docente [1]. Por outro, a falta de atratividade da profissão afasta os jovens das licenciaturas em ensino, de um modo que faz perigar a formação inicial de professores e desanima de concorrer os raros recém‑licenciados.
No entanto, não será esse o fenómeno a que assistimos neste momento. O facto de haver muitos alunos e alunas sem aulas não se deve a essa carência anunciada e concreta. Ainda.
Cerca de 30 mil professores foram arredados do sistema assim que entraram as medidas de austeridade impostas pela troika e por um governo que quis ir mais além. Bastou, para isso, aumentar o número de alunos por turma. Saídos da austeridade, o número de alunos baixou ligeiramente, por força do acordo parlamentar e do Bloco de Esquerda, o que, ainda assim, não permitiu integrar os professores empurrados do sistema, já que ainda persistem obstáculos à sua vinculação.
Neste ano letivo, atípico por causa da pandemia, o que se verifica é que o fenómeno dos horários incompletos por ocupar está a assumir proporções inéditas, mas que o Ministério da Educação teima em negar. O facto de uma parte assinalável dos professores estar no grupo de risco e já de baixa, deixa muitas turmas sem aulas e está na origem do fenómeno.
E agora, a pergunta que se impõe: por que razão não são esses horários preenchidos pelos professores expulsos do sistema de concursos e que ainda não foram recuperados? A resposta está na lógica economicista contaminada pelos supostos constrangimentos causados pela quebra demográfica e que está refletida no concurso para professores sem vínculo, ou seja, contratados, designado por “bolsa de recrutamento”, que neste início de ano letivo já vai na sexta edição.
Segue-se a outra grande questão: mas então se há concursos e há horários, por que razão os alunos continuam sem aulas? A resposta está na forma e nas regras do concurso, associadas a efeitos não esperados, causados pela especulação do mercado de aluguer e do nível de vida elevado, em pelo menos duas regiões do país, mas com tendência a generalizar-se.
Mas ainda assim, não está tudo explicado. Os horários que vão a concurso nas reservas de recrutamento são todos aqueles que restam depois de colocados os professores do quadro que pediram mobilidade. Sobram para as bolsas de recrutamento os horários dos professores requisitados, destacados em comissões de serviço, eleitos para órgãos de soberania, ou outras situações, que são em regra horários completos. Sobram ainda os horários dos professores de baixa, que este ano são na sua maioria os professores dos grupos de risco e, por isso, são de 14 horas letivas. Sobram os horários das licenças de amamentação, que são de 6 horas e as “sobras” depois de distribuído o serviço letivo no final do ano escolar. São estes dois últimos, os designados horários incompletos, que frequentemente assim ficam durante todo o ano letivo, o que tem consequências para os professores: conta menos dias de tempo de serviço, relevante para subir de posição no concurso seguinte; desconta 21 dias para a Segurança Social, em vez dos 30, prejudicando a futura reforma; bem como impede o acesso ao subsídio de desemprego.
Ficou clara a razão pela qual faltam professores? Ainda não. Até aqui, ainda há professores que se sujeitam quase a pagar para trabalhar para ir acumulando algum tempo de serviço, às vezes com horários de 20 horas, que não são considerados horários completos e que impedem que sejam opositores no concurso de vinculação por causa da norma‑travão [2].
Mas então, a pergunta persiste. Por que razão continuam a faltar professores um pouco por todo o país, mas sobretudo na região de Lisboa e no Algarve? Porque os professores começam a rejeitar os horários. E podem? Podem. Por manobras tecnocratas e de pendor economicista, os professores concorrem em simultâneo a vários horários, que, por sua vez, são agrupados nos designados intervalos de horas e escolhem os que mais lhes convém. No primeiro intervalo situam-se os horários completos, os de 22 horas. No segundo, os horários que têm entre 21 horas a 15 horas. No terceiro, os horários que têm entre 14 a 8 horas. Quem encontra colocação no primeiro intervalo acha que lhe saiu a sorte grande, mas continua a ter pesadelos com o espectro da norma‑travão. No segundo intervalo, no dos horários incompletos, os professores imploram e humilham‑se junto do diretor para que o horário seja completado, de modo a que conte o ano letivo por inteiro e seja, pelo menos, uma miragem ultrapassar a norma‑travão. Além de ser uma verdadeira roleta russa [3], pois tanto se pode ficar com 21 como com 12 horas, corresponde a ordenados diferentes e suscita as ultrapassagens, outro problema por resolver no sistema de concurso. Poucos têm essa sorte, porque as diretivas do Ministério são sempre para que os horários não se completem, mesmo quando faltam professores para planos, apoios, tutorias, projetos ou outras atividades das escolas e carrega-se a componente não letiva dos que estão no quadro com todo esse trabalho. No terceiro, como se pode depreender, pouco ou nada tem de atrativo e por isso são os que podem não ser preenchidos durante todo o ano, prejudicando duas a três turmas.
Mas o problema não acaba aqui. Como já dissemos, a partir do segundo intervalo, o ordenado decresce ainda mais e os descontos para a Segurança Social são calculados sobre 21 dias e não 30, ou seja, uma dupla e descarada poupança do Ministério da Educação.
Chegados a este ponto, são poucos os professores que teimam em procurar uma colocação na reserva de recrutamento e deparam-se depois com outras contas: os horários são em escolas perto de casa? Se são distantes, quanto custam as viagens? Quantas partes dos ordenados vão para as deslocações casa-escola? Se não é possível fazer a viagem devido à distância, quanto custa um alojamento?… E em Lisboa? E em Faro?… A esta altura, já o professor desistiu. Numa caixa de supermercado perto de casa ganha-se mais ou tenta-se trabalho noutra área. E os alunos lá vão ficando sem as aulas.
A gravidade deste problema está, por um lado, na relutância consciente e propositada em resolver este disparate burocrata e economicista. Por outro, e o mais grave, é que não dá conta, também porque não quer, que quando houver mesmo falta de professores, dado envelhecimento da classe, os das reservas de recrutamento já desistiram de o ser há muito.
Não se vislumbra a menor tentativa de procurar uma solução do problema que já se está a instalar, tornando a profissão mais atrativa, permitindo que mais professores, que estão neste regime há 20, 15 ou 10 anos, passem a norma‑travão e sejam opositores ao concurso de vinculação. A solução também passa por permitir que os professores acedam mais cedo à reforma, tornando possível vincular um, mais novo, “mais barato” e quase a fazer o trabalho de dois; por olhar para a orientação vocacional e profissional e para a formação inicial; por permitir turmas mais pequenas onde o processo ensino‑aprendizagem é de maior proximidade, tornando desnecessários pomposos e vácuos programas de apoio ao sucesso escolar, de combate ao insucesso, de inclusão, as tutorias, os apoios e as mentorias.
A solução passa, também, por alterar as regras do concurso, nomeadamente considerando apenas dois intervalos, 6 a 11 horas e 12 a 22 horas e permitindo que a partir de doze horas seja completado com todo o serviço de apoio às múltiplas atividades e, por isso, considerado completo, com o ordenado, descontos para a SS e contagem de tempo de serviço corretos, e na observância de norma-travão. Apenas deste modo se previne a falta sistémica de professores.
A não ser que a ideia do Ministério da Educação seja a de abrir a porta a voluntários vindos não se sabe de onde, ou às requentadas ideias do ensino mediado por computador e sem professores, ou então à ideia de que tudo se resolverá com a municipalização, o que será um golpe rude na Escola Pública ou ainda esperar sentado que a quebra demográfica venha resolver o problema.
Não se trata de combater a precariedade na profissão docente, apenas, o que é também urgente e necessário. Trata‑se de olhar de frente o problema que se avizinha da falta de professores e procurar as soluções consistentes, sérias, atempadas, em diálogo com os sindicatos e não cegamente economicistas. Trata-se, na verdade, da finalidade essencial de dar estabilidade às escolas, aos alunos e às famílias, antes que o “tiro saia mesmo pela culatra”.
*Deputada do Bloco de Esquerda à Assembleia da República Portuguesa
[1] Que, a partir de uma determinada idade aufere de dispensa da componente letiva, que passa para a componente não letiva. O horário dos professores é de 35 horas, até à idade de ter as reduções, 11 são da componente de trabalho autónomo destinado à preparação de aulas, elaboração de matérias didáticos e de avaliação e correção de trabalhos e de testes, 22 são da componente letiva e 2 horas são a componente não letiva.
[2] A norma‑travão que diz que um professor, para poder ser opositor ao concurso de vinculação, tem de ter 3 anos letivos completos, lecionados no mesmo grupo disciplinar.
[3] Como se diz na petição de professores contratados contra os intervalos.