Início » A candura de um conceito: a autonomia da escola

A candura de um conceito: a autonomia da escola

Alexandra VieiraAlexandra Vieira*

No que à gestão das escolas diz respeito, em época de adoção de medidas extraordinárias por causa da pandemia e o necessário regresso à escola de todos os alunos e alunas, a palavra autonomia é propalada aos quatro ventos no discurso político. Não há memória de uma palavra tão importante para a vida das comunidades educativas que tenha sido utilizada para dizer tão pouco e fica a dúvida se efetivamente, por parte dos decisores políticos, haverá a noção efetiva do que significa o conceito. Mas há a noção da utilidade da sua utilização como parte da estratégia para envolver e manipular os atores educativos no regresso ao ensino presencial, pela sua enorme atratividade – quem não quer ser autónomo ou quem não quer a sua autonomia reconhecida?

Após mais de uma década em vigor do Decreto-Lei n.º75/2008, o diploma legal que suspendeu a democracia na gestão das escolas, sem efetivas razões para o fazer e que cria a gestão unipessoal, consubstanciada na figura do diretor, está cada vez mais diluído. A razão é simples – é impraticável. Não só os diretores já começaram a perceber que não podem acumular as quase 20 competências atribuídas, nem podem tratar os professores da escola ou do agrupamento de escolas, incluindo o Conselho Pedagógico, como meros consultores e, têm vindo a delegar a atribuição para organizar e decidir a equipas com várias funções e ao Conselho Pedagógico. Os normativos mais recentes referem a expressão “equipa de direção” ou apenas “direção” que não constam no diploma.

Alguns autores, como Licínio Lima, têm apontado a autonomia como sendo o discurso da modernização e do neotaylorismo[1]. É neste quadro que se verifica uma recontextualização e uma reconceptualização de termos como, por exemplo, autonomia, descentralização, participação, agora tendencialmente despojados de sentido político.

Neste contexto de ressemantização, segundo o mesmo autor, a autonomia é processual e implementada, despojada de sentido democrático e descentralizador, de mera delegação política, remetendo para a escola a gestão de conflitos, em períodos de crise ou de contestação, responsabilizando os seus órgãos pela execução das orientações políticas centralmente produzidas, em total conformidade, sem lhes permitir uma intervenção legítima na formulação dessas políticas, sendo o diretor o último elo de uma organização desconcentrada e governada de fora para dentro. Este tipo de autonomia é um instrumento fundamental de construção de um espírito e de uma cultura de organização-empresa. A organização e a administração escolar surgem despolitizadas e desideologizadas, naturalizadas enquanto instrumentos técnico-racionais.

A autonomia representa, assim, uma forma de articular funcionalmente o centro e as periferias da administração escolar e é uma simples técnica de gestão

Expressões como autonomia, projeto educativo e comunidade educativa surgem como metáforas capazes de dissimular os conflitos, de promover, supostamente, a igualdade, o consenso e a harmonia, e como resultados ou artefactos, e não como processos ou construções coletivas. Trata-se de uma tendência para “coisificar” a organização educativa, de a domesticar (como deu conta Paulo Freire) e de a despolitizar.

A autonomia representa, assim, uma forma de articular funcionalmente o centro e as periferias da administração escolar e é uma simples técnica de gestão.

Segundo Lima, o verdadeiro sentido da autonomia inscreve-se primordialmente num conceito de democraticidade e de participação dos atores educativos e da comunidade educativa. Uma escola mais democrática é por definição uma escola mais autónoma (Freire e Lima) e em processo; corresponde à construção de um “bem comum” partilhado, a escola, numa perspetiva política, com campo de forças e arena política e é uma construção coletiva.

No momento atual, em tempos de pandemia, a expressão autonomia, no discurso político, serve exatamente para quê? Será que serve para desresponsabilizar o Ministério da Educação quanto às orientações concretas e específicas que não deu, e deveria ter dado, quanto ao tamanho das turmas, ao seu desdobramento, à carga horária e aos conteúdos programáticos desenhados para exame que se mantém como antes do surto pandémico? Será que serve para abrir ainda mais a porta à discricionariedade e arbitrariedade de cada diretor, que fará o melhor que pode e sabe, com o bom-senso que tem, ou não tem, num exercício já adulterado dos princípios de gestão unipessoal? Colocadas estas dúvidas, a afirmação que se impõe é mesmo esta: é fundamental pensar no regresso da democracia e, com ela, da autonomia emancipadora, à escola como parte relevante da resposta aos tempos excecionais, difíceis e complexos que vivemos.

[1] Numa definição resumida, neotayloismo representa a crença na capacidade reguladora do mercado, na livre concorrência, assente em princípios como competitividade, meritocracia, racionalismo económico e considera a empresa como exemplo de organização, com  resultados quantificáveis e respetivo controlo da qualidade.

*Alexandra Vieira, deputada do Bloco de Esquerda

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!