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O elogio da rotina

Ana Sofia FonsecaAna Sofia Fonseca

Maria é a segunda de oito filhos, todos paridos em casa, bacia de água quente e lâmina de talhar pescoços de galinha, na mão da parteira. Aos cinco, já deitava milho à criação e cuidados aos irmãos mais novos. Cresceu por entre os afazeres do campo, sempre um pedaço de chão para amanhar, as mãos enrugadas de terra. Aos 10, ainda o corpo minguado, cruzava a vindima de bilha à cabeça, a dar água aos homens que suavam na vinha. Aprendeu a bordar e a cerzir, a segurar a agulha entre os dedos com mestria. Mas lápis valia como pagela de padre – era olhar com devoção e suspirar.

Em casa, a mãe arrumava uma Bíblia amarelada e um lápis na mesinha de cabeceira. Às vezes, Maria pegava nele com cuidado e arriscava riscos e letras, mas era difícil acomodá-lo por entre os dedos. Então, fazia de conta que era o merceeiro, sempre o lápis na orelha; ou o padre, lápis afiado a tomar nota das almas por quem rezar. E fazia fé no desejo: vou aprender a ler e a escrever.

A vida ganhou rugas e ela nunca aprendeu a arrumar o lápis nos dedos. Os dias esfumavam-se sempre num ápice, os anos também.

Mas escrever é luxo difícil. Como é que se pega no lápis? Entre os dedos, polegar, indicador e médio de plantão. Os três quase junto ao carvão, mas suficientemente longe. Como é que se mede a distância?

A vida ganhou rugas e ela nunca aprendeu a arrumar o lápis nos dedos. Os dias esfumavam-se sempre num ápice, os anos também. Casou ainda rapariga, mas o homem de pouco lhe valeu. Três filhos alapados à saia e os pés a lavrarem sustento. Trigo, centeio, umas couves, a vindima. Ao domingo, a missa a correr, já nem tempo para os livros. Nos melhores serões, o sonho posto no lápis dos filhos.

Um dia, acordou com 70 anos. Conheci-a pouco depois. A vida feita e os filhos a ampararem-lhe os afazeres. Pôs-se a olhar os netos, pareciam ter nascido ensinados, logo os dedos feitos ao lápis de carvão. Enquanto faziam os trabalhos da escola, ela treinava o movimento. Aos poucos, começou a escrever – as listas das compras rabiscadas com desenhos, o alfabeto ensaiado no avesso das caixas de aspirina. Nessas alturas, lembrava-se do poema que escutara na rádio “há palavras que nos beijam”. Nada mais sabia de O’Neill, mas era capaz de jurar que também há palavras que nos mordem. Para ela, era marido e malvado. Também, analfabeta.

Tenho-me lembrado muito da Maria, sempre o cabelo curto e o sorriso comprido. Aprendeu a escrever o nome e a data. O baptismo dos três filhos. O lápis seguro como cana de foguete. Tenho pensado nela. M-A-R-I-A. “Há palavras que nos beijam como se tivessem boca”. E outras que nos mordem como se fossem medo. Ainda há pouco, rotina era assim. Palavra malfadada, que muitos rejeitavam e que a poucos escapavam. Há uns meses, tudo o que queríamos era fugir-lhe. Agora, o sonho é recuperá-la. A vida fez o pino e o dicionário despenhou-se. Já nem os problemas do quotidiano são problemas nem rotina é condição enfadonha. Deixar os miúdos à porta da escola. Correr para o trabalho. Almoçar fora e barafustar com a conta da luz. Andar por aí. Abraçar um amigo. Abraçar a rotina. Nestes tempos estranhos, rotina dá ares de bem de primeira necessidade.

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