A jornalista portuguesa Isabel Lucas vem a Macau curiosa com uma cultura que ainda chega pouco à Europa. Em entrevista ao PLATAFORMA, fala da experiência que foi escrever um livro de mochila e literatura às costas pelos Estados Unidos. Pensa em repetir a experiência, mas sem repetir fórmulas. Cada sítio, diz, pede uma abordagem.
“Viagem ao Sonho Americano” aconteceu por acaso. Isabel Lucas partiu de Portugal para cobrir as eleições norte-americanas através de reportagens e terminou com um livro. A viagem começou no país liderado por Barack Obama e terminou com Donald Trump na Casa Branca. Ao PLATAFORMA conta como foi a experiência e fala do desafio de traduzir momentos, emoções e uma história com um olho na realidade e outro na ficção norte-americanas. Isabel Lucas, uma das convidadas do Festival Literário – Rota das Letras, vem a Macau curiosa com a cidade da qual ainda chega pouco ao outro lado do mundo.
– Antes de ter sido convidada para o Rota das Letras, já tinha tido algum contacto com esta parte do mundo e, especificamente, com Macau e com a China?
Isabel Lucas – Estive um mês no Japão. Foi o mais próximo que me senti da China ou de Macau. Quando me convidaram para ir ao festival, fiquei muito contente. É uma oportunidade, não sei se é única mas pelo menos é invulgar, de poder ir a um sítio onde se fala português, onde há qualquer coisa da nossa cultura e que é tão distante. Há uma curiosidade muito grande que tem que ver sobretudo com a língua, como é que se mantém, como é que um festival destes acontece.
– Há uns anos foi atribuído o papel a Macau de intermediário entre a China e os países de língua portuguesa, incluindo ao nível cultural. Enquanto jornalista e escritora que, inevitavelmente têm outros olhos, de que forma chega Macau e a China? Chega esta imagem de ponte entre as duas culturas?
I.L. – De Macau chega-nos muito pouco. E creio que essa perceção não existe fora de um núcleo muito restrito. O que nos chega da China é sempre a grande potência económica. Em todos os lados do mundo, e a Europa não é exceção, a China entra-nos cada vez mais pela vida. Em Lisboa, há cada vez mais chineses. Não só os chineses que estão cá há muitos anos, os das pequenas lojas, mas também os chineses com outro poder de compra. E vai-nos chegando um ou outro livro de um autor chinês, mas muito pouco. A tradução das línguas da China presumo que seja complicada e há um desconhecimento muito grande do que pode ser a literatura desse lado do mundo. Chega também a tecnologia, e continua a chegar alguma coisa do que é uma sabedoria ancestral. De algum modo, é um paradoxo. A grande China tecnológica e moderna contrasta com esta mais lenta. É uma China idealizada por nós, num Oriente também idealizado. São esses dois mundos que são a China que nos chegam, não tanto a cultura. Da cultura chinesa pude ver alguma coisa em grandes exposições mundiais e feiras de arte. Aí percebe-se que há uma grande produção, que ainda não chega às massas, mas que, quem lida com a arte, percebe que está a haver um boom muito grande. Estas coisas todas um bocadinho soltas vão chegando e construindo uma ideia onde o novo e o antigo convivem, muitas vezes de uma maneira que parece desgarrada.
– É jornalista e crítica literária. Como foi a transição de escrever sobre livros para escrever livros?
I.L. – Já escrevi sobre tudo em jornalismo. Acho que a única coisa sobre a qual nunca escrevi foi sobre economia pura e dura, apesar de já ter trabalhado em jornais de economia. Mas, quase desde o início, apesar de já ter passado por todas as secções nos jornais onde trabalhei, fui sempre escrevendo sobre livros porque para mim era natural. Comecei a trabalhar como freelancer há sete anos e passou a ser a minha área principal nos jornais, apesar de tentar não ficar fechada nela. Este livro [Viagem ao Sonho Americano] não foi pensado para ser livro. É um livro que reúne trabalhos que foram pensados para ser publicados no jornal, enquanto reportagens que partem da literatura para tentar perceber um bocadinho a realidade norte-americana. A partir do momento em que o primeiro texto sai, tive um convite para fazer um livro. Surgiram mais convites, entretanto, e pareceu quase natural que aqueles textos tivessem evoluído para um volume que os guarda de alguma maneira, que é se calhar aquela que mais me satisfaz: uma espécie de capa para guardar reportagens que têm um ponto comum, uma geografia comum, um tempo comum. Têm uma ideia que as une que é a de tentar entender um período através de uma literatura que, no caso americano, está muito ligada ao real.
– Alguma vez pensou em desenvolver um projeto semelhante noutra zona do mundo?
I.L. – Já me passou pela cabeça. Quando fiz este trabalho nos EUA, tinha algum conhecimento do país e da literatura do país. Nos últimos sete anos, tenho passado quase metade do ano em Nova Iorque e noutras partes dos EUA. Fui também sabendo muita coisa sobre a literatura americana. Comecei a fazer essa espécie de viagem literária. A perceção que de facto existe uma grande proximidade entre o que se escreve e o real vem dessa consciência e dessa proximidade com o que se escreve. Há curiosidade em fazer isso de novo, claro. Curiosidade que faz parte da minha genética enquanto jornalista. Teria de fazer isso com uma literatura que conheço razoavelmente bem e que me dê pistas para depois poder conhecer o resto. É um trabalho muito desgastante fisicamente. É duro fazer isto da maneira como o fiz e isso faz-me recuar um bocadinho, e pensar que preciso de mais dois, três meses ou um ano para amadurecer alguma coisa deste género. Mas também não me apetece repetir fórmulas. Teria de ter qualquer perspetiva nova. Se encontrar uma nova abordagem para outro sítio, aí posso conceber uma nova viagem que me leve assim pelo acaso e pelo que vou encontrando.
– Diz que gosta do contacto entre a ficção e a realidade. Como é que explora estas duas áreas no seu trabalho?
I.L. – Na base disso tudo está uma coisa que é humana: a vontade de perceber melhor o mundo. A curiosidade move-me. O livro para mim é uma coisa real como a rua que estou a ver lá fora. Fazer a ligação entre uma coisa e outra é natural. Não é uma coisa que pense separadamente. Quando pego num livro, e se me interessa, é porque tem qualquer coisa que me liga ao mundo e o mundo pode ser um mundo material como o mundo mais metafísico, de fascínio, deslumbramento, inquietação…tantas sensações que a leitura nos pode trazer e que são reais, porque as sentimos. Escolhi a ficção para me acompanhar na viagem que fiz aos Estados Unidos porque é a área que trabalho mais, que conheço melhor e vejo no romance muitos tópicos. É escrito para entender o real. Quero que a literatura me leve a algum lado. Pode ser fisicamente ou não, mas que me leve a fazer perguntas. E a minha profissão tem que ver com isso: fazer perguntas. E por isso há uma conjugação muito boa.
– Noutra entrevista, falava da importância da língua e da linguagem, e da forma como nos condicionam na perceção do que nos rodeia e da forma como o descrevemos. Alguma vez sentiu que se perdeu a mensagem ou que fica algo por dizer, por exemplo por causa de uma tradução?
I.L. – A questão da tradução é muito importante. Não é só a tradução de uma língua para a outra. Um jornalista quando está a escrever, sobretudo uma reportagem em que pode transmitir mais informação que não é a factual… A maneira como vai contar uma história implica perceber muita coisa e perceber é entrar num mundo que não é necessariamente o dele. Passa por um processo de tradução de costumes, de maneiras de ser, de hábitos. Se isto já é complicado na própria língua, complica-se ainda mais numa língua que não é nossa e que tem tantas variantes consoante o sítio onde se está e a comunidade em que se está. Há muitos filtros pelo meio. Trazendo alguma verdade no meio disto tudo. Que verdade é essa? Houve alturas em que a tradução não foi tanto a da palavra. Há palavras que carregam muita coisa. Portanto como é que faço esta ponte entre a minha língua e a língua dos outros, a minha linguagem e a linguagem dos outros? Depois as traduções. Traduzir uma obra é sempre muito complicado porque se perde sempre. Não há como não perder. Há um pacto: leitor, tradutor e autor sabem todos que vão perder. Quando lemos Moby Dick em português, já passou por várias traduções e estamos sempre na mais atual. A Moby Dick que se lê em inglês é a mesma. Foi aquela que o Melville escreveu. As palavras são as que o autor escolheu. Gosto muito das variações da língua portuguesa e das diferentes maneiras como é falada nas várias partes do mundo. Não gosto nada das normalizações. Gosto que a língua se adapte às regiões e à cultura, que seja maleável. Outra das curiosidades que levarei comigo para Macau é ver como o português se adapta a esse sítio tão longe da génese da língua.
– E projetos novos?
I.L. – Tenho muitas ideias. O que tento fazer é conciliar e dar espaço a que apareça alguma coisa com maior fôlego. Gostava de fazer qualquer coisa que me levasse com os livros para algum lado, não sei quando. Também gostava de ficar quieta num sítio, e pensar e digerir muitas das coisas que me aconteceram nos últimos tempos e fazer qualquer coisa com o que não contei, com o que não escrevi e não tive tempo de digerir. Este livro que aconteceu não foi um projeto de livro. Foi uma proposta. E nasceu muito depressa e foi posta no terreno num instante.
– Como é que imagina o momento do festival – em que vai estar em contacto com escritores e públicos de diferentes partes do mundo, vai ser traduzida para outras línguas. Sente que a condicionam estas questões?
I.L. – Vou estar com certeza atenta a muitas coisas que se vão passar no festival enquanto espetadora e leitora. A minha curiosidade é em relação aos outros, mas também em relação ao que os outros podem querer saber de mim e aí também vou ser surpreendida. Certamente irei trazer alguma experiência que me vai mudar. Quero andar pelas ruas da cidade, ouvir os sons, as línguas que se falam…
– Deixei para o fim a pergunta inevitável. Durante a experiência da viagem pelos Estados Unidos, houve algum momento ou história que a tivessem marcado e que tenha acabado por ser um momento de viragem?
I.L. – Houve muitas coisas que me comoveram, que me zangaram, que me fizeram sentir muito próxima de um estado de êxtase. O momento de viragem, e que me fez alterar alguns planos, nomeadamente a rota que tinha planeado, foi a vitória do Donald Trump. Era para ir para sul e voltei para norte para perceber o norte, que votava maioritariamente Trump. Estava em Nova Iorque quando foram as eleições e quando Trump ganhou, senti uma cumplicidade. Com muitas perguntas para fazer e sem entender bem como aquilo tinha acontecido. Isso via-se no dia seguinte nos olhos das pessoas. Eram olhos que ora se fixavam no chão, ora tentavam encontrar outros olhos. Não sendo americana, senti esse peso. Havia uma interrogação muito grande: como é que foi possível isto acontecer? E quando falo dos nova iorquinos, se calhar São Francisco sentiu o mesmo. Mas sendo Nova Iorque a cidade da diversidade – que acolhe todo o mundo, onde vive toda gente – foi uma cidade que estranhou muito e que não se reviu no país. E eu senti esse lado de incompreensão e foi mais um motivo para pegar na minha mochila e mudar a rota. Fui com outras perguntas para quem teria votado em Trump e perceber os motivos que os levaram a votar, sem sentir esse desfasamento porque Trump existe, é um produto daquele país, é um americano que foi eleito por americanos. Não terão sido a maioria dos americanos a votar nele, mas é democraticamente o presidente dos EUA. A democracia permite isto. É uma tentativa, mais uma vez, de tentar perceber o real. Este foi o principal acontecimento que me marcou. Aconteceu o que se pensava ser o mais imprevisível que era ganhar Trump. Já passou quase um ano. Já estamos mais habituados a esta ideia. Mas naquela altura foram muitas emoções. Havia a sensação de não se estar a perceber nada do que se estava a passar.
Catarina Brites Soares 23.02.2018