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Tempestade ou bonança eleitoral?

Éric Sautedé entende que os efeitos da passagem do tufão Hato por Macau podem favorecer os candidatos mais críticos do Governo. António Katchi discorda. Há um ponto em que os analistas convergem: quase nada vai mudar no domingo graças a um sistema político “pouco democrático”. 

Há um mês Éric Sautedé diria que nada mudaria com as próximas eleições legislativas. A passagem do tufão Hato, a pior tempestade desde há mais de 50 anos na região, fez o analista mudar de opinião. “Por causa da total incompetência do Governo na gestão do tufão, acho muito provável que acabemos por ver mudanças que vão para lá dos meros ajustes”, diz.

Éric Sautedé não tem dúvidas de que o Hato aumentou as probabilidades de sucesso dos candidatos mais críticos do Executivo e reduziu as dos que lhe são mais favoráveis. “A população está muito desiludida, senão mesmo zangada com a Administração de Chui Sai On. É bem possível que dê uma oportunidade aos candidatos que desafiam o Governo”, antecipa.

O analista António Katchi é mais pessimista: “Não vislumbro nada que indicie uma mudança significativa na composição da nova legislatura”.  E, ao contrário de Sautedé, Katchi considera que o tufão Hato fechou ainda mais as portas à mudança, já que “dificultou” a realização de atividades de campanha eleitoral. 

“A própria população terá tido menos ocasião de estranhar esta situação insólita que é, a um mês das eleições, os candidatos estarem como que desaparecidos em parte incerta e a comunicação social falar pouco das eleições e praticamente nada das listas e candidatos”, afirma.

Katchi critica a lei eleitoral, que permite apenas 15 dias de campanha, e diz que o tufão poderá ter “aligeirado” o impacto e a visibilidade das disposições “liberticidas” do diploma. “O tufão ocorreu dentro de um período em que estava proibida qualquer atividade que pudesse subsumir-se no conceito legal de “propaganda eleitoral”, lembra.

Para Éric Sautedé, a tempestade fragilizou a imagem do Executivo e dos que o apoiam, à semelhança do que aconteceu quando Chui Sai On tentou fazer aprovar a proposta de lei que criava um pacote de regalias para os titulares dos principais cargos públicos três meses antes das eleições para Chefe do Executivo, em 2014. A intenção de Chui Sai On provocou na altura o maior protesto no território desde a transferência de Administração para a China, em 1999. 

“O Governo tem falhado bastante na resposta a questões importantes a que é suposto responder”, afirma Sautedé, para quem a negligência em mais um momento-chave, como foi o tufão Hato, pode valer votos aos opositores.

Quem entra e quem sai

Se a passagem da tempestade de 23 de agosto pode ser considerada um “ponto de viragem” na forma como os cidadãos olham para o Governo e para alguns políticos, há outras questões a minar a confiança dos residentes naqueles que os deviam representar, entende o politólogo francês.

Sautedé fala dos interesses privados que alguns deputados privilegiam em detrimento do que é melhor para Macau. “É bem provável que alguns deputados que representam o setor empresarial – como Angela Leong, Melinda Chan, Mak Soi Kun, Kyan Su Lone [nunca eleito e atual número dois de Si Ka Lon] e Zhen Anting – sejam afastados.» 

No entanto, ressalva Sautedé, alguns contam com o apoio do Governo central. “Parte da equação tem também que ver com a posição de Pequim. Por um lado, temos a vontade da população. Por outro, temos os interesses de quem prestou lealdade durante décadas, apesar de ter provado ser bastante incompetente sucessivamente”, afirma. 

O professor de Ciência Política antecipa mais mudanças nos lugares de eleição por sufrágio direto na Assembleia Legislativa e aponta sete nomes como fortes candidatos: Ieng Weng Fat (número dois de Ho Ion Sang na União Promotora Para o Progresso, a lista dos Kaifong), Agnes Lam (candidata pela terceira vez,  pelo Observatório Cívico), Sulu Sou (cabeça de lista pela Associação do Novo Progresso de Macau), Kyan Su Lone (número dois de Si Ka Lon na Associação dos Cidadãos Unidos de Macau, apoiada por Chan Meng Kam), Kuan Vai Lam (número dois da lista da deputada Angela Leong, Nova União para Desenvolvimento de Macau), Ron Lam U Tou (líder do Poder da Sinergia) e Cloee Chao Sao Fong (cabeça de lista da Linha de Frente dos Trabalhadores de Casinos). 

Em 33 lugares, há apenas 14 eleitos por sufrágio direto. Dos deputados escolhidos pela população nas últimas eleições, apenas dois – Kwan Tsui Hang e Chan Meng Kam – não entram na corrida desta vez. “Vai ser muito difícil que mais do que quatro destas novas caras consigam ganhar”, prevê o analista.

As apostas de Sautedé vão para a força política do grande vencedor das últimas eleições, com fortes ligações à comunidade de Fujian. “Há duas listas do deputado Chan Meng Kam. É uma forma de assegurar os três lugares que ganharam quase por acidente em 2013”.

Dividir para reinar também foi a jogada dos Kaifong e da Associação Geral das Mulheres de Macau, que desta vez se apresentam em listas separadas. Wong Kit Cheng, que em 2013 foi a número dois da lista apoiada pelos Kaifong, é agora a líder da lista Aliança de Bom lar. A competição é muita e a divisão pode significar um maior sucesso no sufrágio, tendo em conta o método de contagem de votos utilizado em Macau. “É uma estratégia inteligente tendo em conta o apoio que tiveram nas últimas eleições”, diz Sautedé.

António Katchi, por sua vez, não vê “sinais de mudança significativa” na composição da próxima legislatura.

O académico começa pelos sete deputados nomeados pelo Chefe do Executivo e pelos 12 eleitos de forma indireta. “Certamente não se esperará qualquer mudança política. Poderá haver mudança de caras, mas não de corações”, ironiza.

Quanto aos deputados eleitos pela via direta, Katchi divide a batalha em dois blocos: os candidatos pró ‘status quo’ – defensores do regime político, do sistema económico e das políticas seguidas pelos governos de Edmund Ho e de Chui Sai O –  e os candidatos com “pendor oposicionista”.

Se as alterações que ocorram no bloco “conservador” são “irrelevantes”, as que podem ter lugar no bloco mais crítico já têm alguma importância para Katchi. 

Para o analista, é com os candidatos “oposicionistas” que ganham relevância causas como a democratização do regime político, proteção dos direitos civis, preservação e ampliação dos direitos económicos, sociais e culturais, defesa dos interesses sócio-laborais dos trabalhadores, proteção do ambiente e do património histórico-cultural e respeito pela diferença e inclusão social das minorias, como a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgénero). 

“O empenho ou o apoio a estas causas variam bastante no seio desse mesmo bloco. Bloco este que acaba por ser politicamente muito mais heterogéneo do que o primeiro”, afirma.

A culpa é do sistema

Domingo podia ser um dia de mudanças não fosse o sistema “pouco democrático”. “Se pensarmos bem, a ausência total de sondagens antes das eleições é um indicador evidente de como o sistema está viciado”, defende Éric Sautedé.

Para o comentador político a “Assembleia terá sempre um papel minoritário”, já que em Macau vigora um sistema “em que tudo ou quase tudo está nas mãos do Chefe do Executivo”.

António Katchi concorda que a Assembleia tem uma posição “bastante subalterna” e, por isso, defende que é mais relevante o que se passa fora dela. “São muito mais importantes para o progresso social e para o próprio desenvolvimento político e económico, a luta de classes e a mobilização das massas fora da Assembleia do que as caras e as próprias cores políticas no hemiciclo”, defende.

O sistema “pouco democrático”, a falta de cobertura da campanha política e um eleitorado menos jovem deixam pouca margem para grandes expectativas de mudança nestas eleições. “Se olharmos para o eleitorado, temos menos jovens que em 2013. Os cidadãos com menos de 29 anos representam apenas 16 por cento do eleitorado face a 19 por cento em 2013”, nota Éric Sautedé.  

Catarina Brites Soares

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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