Início » Mistério dos quadros desaparecidos em academia fantasma

Mistério dos quadros desaparecidos em academia fantasma

Era suposto ter sido uma academia de talentos artísticos, mas acabou extinta em poucos anos, sem conhecimento das autoridades que em Macau supervisionam a formação. A história desponta com o desaparecimento de nove quadros do artista Denis Murrell e desemboca em empresas offshore, nas Ilhas Virgens Britânicas.

Nove quadros de Denis Murrell, que o artista diz valerem 500 mil patacas, estão desaparecidos. Emprestou-os para serem usados na decoração do Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau, mas, quando procurou reavê-los, a instituição já tinha fechado.

O alerta foi dado por Denis Murrell num texto publicado na rede social Facebook, em que referia que nove quadros seus tinham sido deitados no lixo. Tinha emprestado as obras para decorarem as paredes do Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau, através do designer local Nuno Calçada Bastos, que se comprometeu a devolvê-los quando o pintor quisesse. No início deste ano, o artista procurou reavê-los, mas descobriu que o estabelecimento tinha fechado e que os quadros tinham desaparecido.

Denis Murrell tinha um estúdio num edifício industrial, na Rua Almirante Lacerda, usado pela Escola Católica Estrela do Mar para cursos vocacionais, em 2007. Quando esse espaço fechou, Denis Murrell ficou sem saber o que fazer a vários quadros. Foi então que Nuno Calçada Bastos perguntou se poderia usar os quadros para a decoração de um novo centro “que estava a ajudar a montar” e que seria gerido pela atriz e cantora de Hong Kong, Maria Cordero. Denis Murrell aceitou, mas a título de empréstimo.

Mais tarde, Nuno Calçada Bastos — que, entretanto, se encontrava a residir no Camboja — enviou algumas mensagens de telemóvel a Denis Murrell, avisando-o de que o centro estaria prestes a fechar e de que teria de levantar os quadros. “Estava no Camboja e eu, durante meses, estive de cama [doente] — deslocar-me seria difícil”, recorda.

Em fevereiro deste ano, depois de ter recebido uma proposta de um hotel para expor algumas pinturas na recepção do espaço, quis reavê-los. “Enviei mensagem ao Nuno [Calçada Bastos], que me respondeu que (…) não sabia onde estavam os quadros, já que a escola tinha fechado”, refere. “Ele [Nuno] foi à escola e descobriu que o espaço já estava em obras; tinham tirado tudo dali e o segurança disse-lhe que deitaram tudo para o lixo.”

Denis Murrell tentou então falar com Mário Bibi Cordero — filho de Maria Cordero — e que estaria a gerir o centro nessa altura, mas sem sucesso, já que o número de telemóvel de Macau não dava sinal.

Contactado pelo PLATAFORMA, Nuno Calçada Bastos respondeu: “Denis tinha o seu trabalho nas paredes da escola gratuitamente — foi um acordo com a escola. Eu também tinha equipamento [fotográfico] que nunca recuperei. Devíamos ter levantado as nossas coisas antes, é triste que a escola não tenha feito um esforço para nos devolver as coisas e apenas tenha destruído tudo.”

Inquirida sobre o que terá acontecido aos quadros, Maria Cordero diz nada saber, alegando que, em 2013, encontrava-se fora da escola, e defendendo que “a responsabilidade” caberia a Nuno Calçada Bastos. Além disso, nessa altura, “o centro era gerido por Ana [Maria Manhão Sou]”, afirma. Ana Maria Manhão Sou diz nada saber do sucedido e Mário Bibi Cordero recusou falar com este jornal.

Um centro fechado sem o Governo saber

Apesar de o Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau estar, ao que tudo indica, sem funcionar desde 2013, a Direção dos Serviços de Educação e Juventude apenas se apercebeu disso depois de contactada pelo PLATAFORMA, em 2017.

O Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau começou a funcionar em 29 de agosto de 2012 e lecionava os cursos de Design, Artes Gráficas, Música, Teatro, Dança e Acrobacia, segundo a Direção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). Uma vez que “não abriu os cursos de longa duração”, esta instituição suspendeu, apenas em junho de 2015, a sua participação no “Programa de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento Contínuo”. Um número total de 24 alunos beneficiou, até 2013, do programa público que subsidia a formação de residentes em valores até seis mil patacas.

Inquirida sobre a data de fim da licença para funcionamento, a DSEJ respondeu que o “alvará ainda se encontrava válido”. Na sequência do contacto deste jornal, deu-se então “uma vistoria in loco”, afirmou a DSEJ por e-mail, apurando-se que “este centro não se encontrava em funcionamento, e [que] o mesmo não notificou a direção de que cessou os seus serviços”, conforme exigido por lei. E, assim, se iniciou “o procedimento de cancelamento do alvará deste centro”.

A fundadora Maria Cordero, uma famosa cantora e artista de Hong Kong com raízes no território, numa entrevista à Aomen.tv emitida em 2012, afirmou que pagou “500 mil patacas por mês [de renda] durante dois anos”, sem apoio do Governo, para manter o Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau. O objetivo deste estabelecimento “era trazer oportunidades” na área da formação cultural à população .

Uma administração offshore

A empresa Academia de Talentos de Macau Ltd — que lançou o Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau —, iniciou atividade em julho de 2008, tendo por administradores o residente local Pedro Miguel Manhão Sou e Maria Cordero, segundo o registo comercial da firma. A empresa tinha por objeto a formação profissional.

Em 14 de agosto de 2010, os dois sócios-administradores cessaram funções e transferiram, no mesmo dia, as suas quotas para a empresa Fountain City Holdings Limited, sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. Essa firma passou a ser a única sócia e Luís Miguel Manhão Sou — irmão de Pedro Miguel Manhão Sou — e Maria Cordero foram nomeados administradores da empresa.

Na rede social LinkedIn, a atriz de Hong Kong identifica-se como a diretora da empresa Fountain City Holdings Limited desde 2010. Nesse mesmo ano, segundo sabe o PLATAFORMA, já o Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau tinha iniciado funções, ainda que a licença apenas tenha sido emitida em 29 de agosto de 2012.

Em abril de 2011, a Academia de Talentos de Macau aumentou o capital social de 25 mil patacas para 2,5 milhões de patacas. Em janeiro de 2013, voltou a haver uma subida do capital social para cinco milhões de patacas.

Ainda segundo o registo comercial, em 4 de setembro de 2013, Luís Miguel Manhão Sou veio a renunciar à sua função de administrador, seguido por Maria Cordero, em 11 de dezembro de 2013. Entretanto, em setembro de 2013, Mário Bibi Cordero — filho da atriz de Hong Kong — era nomeado administrador. Em 23 de janeiro de 2015, também ele renunciou à sua posição de administrador.

Entre dezembro de 2013 — altura em que o Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau já estaria fechado — e setembro de 2015, continuava a haver sinais de movimento no registo comercial da empresa Academia de Talentos de Macau Ltd, com administradores a cessar de atividade e a mudar de posições. Aliás, em 15 de janeiro de 2015, a Fountain City Holdings Limited transferiu parte da sua quota (no valor de 1,2 milhões de patacas) para o sócio Wang Lijun.

Contactados pelo PLATAFORMA para comentar as atividades da empresa, Luís Miguel Manhão Sou recusou-se a falar com este jornal e Maria Cordero não respondeu às chamadas e mensagens.

Empresa de talentos ligada aos  Panama Papers

Mário Bibi Cordero está listado no portal do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) Offshore Leaks — uma base de dados com informação sobre quase 500 mil entidades com atividade em paraísos fiscais. A organização é responsável por investigações jornalísticas como as Offshore Leaks e as Bahamas Leaks, além dos mais recentes Panama Papers – nos quais, no lote de dados divulgados a partir do escritório de advogados Mossack Fonseca, surge o nome de Cordero.

Cordero é identificado como o sócio de Hong Kong de uma empresa chamada True Talent Management Limited, sob a jurisdição das Ilhas Virgens Britânicas, desde janeiro de 2011, juntamente com Fok Sao I e Leong Sao Wa, associados a uma morada de Macau. A empresa foi entretanto extinta em 2013. O intermediário na constituição desta firma foi a empresa O.S.R. Consultants and Secretaries Limited, responsável pelo estabelecimento de mais de 150 empresas em offshore a partir do ano de 1991. A empresa  True Talent Management Limited foi dissolvida em 3 de setembro de 2013. Em 4 de setembro de 2013, Mário Bibi Cordero foi nomeado administrador da Academia de Talentos de Macau Ltd. Contactado por diferentes meios, Mário Bibi Cordero recusou comentar.

Mudanças na gestão da academia publicadas em anúncios da imprensa

Em agosto de 2013, dois anúncios eram publicados no jornal Hoje Macau. O primeiro comunicava que Ana Maria Manhão Sou e Luís Miguel Manhão Sou eram “destituídos de todas as funções, cargos e responsabilidades” exercidas no Centro de Educação da Academia de Talentos de Macau e da sociedade Academia de Talentos, enquanto o segundo expressava que Maria Cordero, “administradora do Centro” declarava “não ter qualquer afiliação pessoal de negócios com Ana Maria Manhão Sou e […] Luís Miguel Manhão Sou”, manifestando ainda que não era “responsável por qualquer transação efetuada ou contrato celebrado por estes indivíduos no passado”. 

Luciana Leitão

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!