– Nacionalismos, guerras ideológicas, sobretaxas… e a Casa Branca do avesso. Contexto ideal/necessário para recuperar as relações com a China?
A.C.S. – Abre-se uma grande oportunidade. Portugal e a China têm relações desde o século XV; essenciais para o comércio entre a China, o Japão, e outros países asiáticos. Nesta crescente fragmentação geopolítica e geoeconómica, Trump visa não só Canadá e México, mas sobretudo Europa e China. Face às lições da História, compreendemos que nas guerras tarifárias toda a gente perde – desde logo os Estados Unidos. Temos de defender o comércio e as relações internacionais; e China e a União Europeia, em conjunto, representam 30% do comércio internacional. Portugal e Europa devem intensificar relações políticas, tecnológicas e comerciais com a China, em múltiplas áreas. Fico muito contente com investimentos como o da CALB, um dos maiores fabricantes de baterias do mundo: 2,2 mil milhões de euros no polígono de Sines; o que mostra a capacidade de agregar valências da China e de Portugal. Vejo grandes oportunidades nas energias renováveis, baterias e carros elétricos. A China vai necessariamente penetrar nessas cadeias de valor.
– Depois da Covid e da guerra na Ucrânia – tudo mudou. Ideologia, estratégia; ou pressão dos Estados Unidos?
A.C.S. – Absolutamente… por influência de Washington. Levantaram-se questões de segurança nacional e defesa; mas, evidentemente, podem desenvolver-se procedimentos e regulamentação. É impossível regular a tecnologia no mundo, estabelecer muros e fronteiras; mas o que passa, a partir dos Estados Unidos, é transformar o comércio e a tecnologia em armas geopolíticas; fazer guerra a determinadas empresas e instituições; com protecionismo e nacionalismo – sempre excessivos. A China é um grande investidor em toda uma gama de tecnologias vitais para Portugal e a Europa; o maior investidor no mundo em energia renovável. Em 2024, produzia 60% dos carros elétricos no mundo 80% das baterias, 95% dos componentes da indústria solar; e adicionou à sua matriz energética 330 gigawatts – sete vezes mais que os Estados Unidos. Portugal também mudou a sua matriz energética: começou o século XX com uma dependência de 89% dos combustíveis fósseis; hoje está em 65%; e 71% da eletricidade provém das renováveis. Apostámos muito nas energias eólica e solar; em consonância com o que passa na China. Portugal pode ser uma plataforma tecnológica, energética, e logística, para todas essas cadeias de valor.
– Três meses de Trump derrubam a chino-fobia?
A.C.S. – Não direi que é suficiente; há sempre franjas do espectro político à espera de mudanças de última hora – clássico na Europa. Defendo é o que defendeu Merkel. Há uma famosa fotografia no G7 – 2016 – na qual Trump parece um miúdo atrevido e mal-comportado; está a chanceler alemã em cima dele, o presidente francês de cabeça perdida, o primeiro-ministro japonês… A partir daí, Merkel disse que a Europa tinha de contar consigo própria. Nesta altura, há uma onda impressionante na Europa, que se está a reorganizar. Perdeu muito tempo, mas é um grande bloco mundial, com 500 milhões de consumidores – fulcral para a China. Portugal é uma potência ao nível do soft power, com influência na América do Sul, África e Ásia; e pode usar todas essas plataformas.
– Assumindo a ponte para a China?
A.C.S. – Exatamente; muito importante para o comércio mundial, exportações/importações; e para substituirmos o que correr menos bem a partir dos Estados Unidos. China e União Europeia são os blocos que podem minimizar as alterações climáticas e continuar a investir nas energias renováveis. Portugal acaba de aprovar quatro grandes projetos nessa área; temos as maiores minas de lítio da Europa; e uma das maiores minas de cobre – não há eletricidade sem cobre, nem transportes elétricos sem lítio. Queremos fixar toda a cadeia de valor do lítio; da extração, refinação e processamento – contando com a China – e a Haitong tem um grande projeto na área dos cabos elétricos – os cabos submarinos são também vitais. Há um segundo aspecto, geopolítico: os Estados Unidos podem ferir o PIB chinês entre 15% a 51%, mas só com apoio dos aliados. Se a Europa não estiver ao seu lado, só ferem a China entre 5% a 7% do PIB. A China consegue ferir 4% a 5% do PIB norte-americano – ela por ela. É fulcral a Europa trabalhar com a China; e neste balanço entre energia e geopolítica, pode haver um novo ciclo nas relações Portugal-China.
Neste balanço entre energia e geopolítica, pode haver um novo ciclo nas relações Portugal-China
António Costa Silva, escritor, antigo Ministro da Economia de Portugal
– Corremos mesmo o risco da Armadilha de Tucídides?
A.C.S. – Não tenho dúvida nenhuma. Antes de vir para cá estava a ler o livro que o antigo primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, publicou com Ahmed El-Erian, grande economista norte-americano: Permacrise – crise sustentada no tempo, induzida por fatores aleatórios, que depois se configura e pode mudar tudo. Numa das vezes que Xi Jinping esteve no Reino Unido, Brown perguntou-lhe qual era o maior risco que a China corria no século XXI; e a resposta foi extraordinária: cairmos na Armadilha de Tucídides. O historiador grego escreveu sobre a Guerra do Peloponeso, há 2.500 anos, um dos livros mais extraordinários de sempre, explicando que um império emergente corre sempre o risco do conflito armado com o império hegemónico. Os números são claros: em 1995, o PIB chinês representava 2% do PIB mundial; hoje 19% – a caminho dos 20%. Trabalhar com a China é proteger a economia, as cadeias logísticas, exportações/importações, comércio, a paz e a estabilidade. É preciso evitar, a todo o custo, a Armadilha de Tucídides.
– Xi Jinping diz que a evitará… e Trump?
A.C.S. – Trump é um líder com pés de barro; e políticas económicas que são um coquetel de contradições. Daron Acemoglu, Nobel da Economia, publicou um artigo devastador no Financial Times, sobre os efeitos da combinação entre guerras tarifárias, erosão das instituições, desregulação total, e o fim da lei contra o monopólio – Sherman Act, de 1911 – precisamente para controlar o superpoder da Standard Oil e dos caminhos de ferro. Elon Musk rasurou-a; e hoje o oligopólio das tecnológicas apodera-se da Casa Branca. Na diplomacia há a teoria do ‘crazy man’, que promove medo e insegurança nos parceiros com quem negoceia. Pode funcionar na diplomacia; transportado para a economia é um desastre.
– Como olha Portugal para a diáspora em Macau?
A.C.S. – Há aqui um património imaterial imenso.
– Não rentabilizado…
A.C.S. – Portugal, ao nível do seu funcionamento político, tem de aprender com a liderança chinesa, que tem políticas claras de curto, médio e longo prazo. Em Portugal não temos a perceção da importância de Macau, da ligação à China, desta relação histórica e do posicionamento na Grande Baía. E, nos últimos anos, houve esse retraimento estratégico. Fui sempre contra isso, inclusive na questão da rede 5G. Na altura houve uma investigação dos serviços secretos britânicos sobre a Huawei, que provou com muita clareza não haver ameaça à segurança nacional. Não podemos ir atrás das ideias dos Estados Unidos, sobretudo quando não têm sustentabilidade nenhuma; mas fomos – e temos de reverter isso. Reatar a ligação, a partir de Macau, com a Grande Baía e a China; não só com empresas portuguesas, mas de todos os países lusófonos que podemos atrair. Trazer para aqui, e levar da China para Portugal – e resto do mundo. Estamos numa fase crucial em que a ordem energética, dirigida pelos petroestados, vai passar a ser gerida pelos eletroestados – e o maior do mundo é a China. É fundamental para a Europa a fertilização cruzada de projetos e ideias.
– O que é preciso para as empresas portuguesas olharem para Macau/Grande Baía? Contexto político, ou consciência empresarial?
A.C.S. – É preciso uma estratégia top-down, com impulso político; depois bottom-up, com as empresas; desde logo com Macau e a Grande Baía. Há vários domínios em que Portugal está relativamente avançado; por exemplo, no software e tecnologias de informação; avança também na Inteligência Artificial, embora aí a China seja a maior potência do mundo. Pode haver projetos na comunicação da China com o resto do mundo; por exemplo, através da geografia de cabos submarinos, onde a centralidade de Portugal é absolutamente vital. Toda a área das biotecnologias está em desenvolvimento; a investigação em saúde, clínica de ponta, e novas tecnologias digitais nos produtos biológicos. Temos de transformar o modelo económico baseado na produção de produtos poluentes para outro baseado em produtos biológicos – circularidade entre economia e bioeconomia. Portugal tem projetos interessantes que pode disseminar; mas importa a escala que se pode obter na Grande Baía. É vital numa economia como a portuguesa, que tem poucas empresas com dimensão para o que já estamos a fazer.
– O que se pode fazer em Macau por isso?
A.C.S. – Mapear todas as redes cruzadas que se podem desenvolver entre Macau e a Grande Baía, e de Macau para a economia portuguesa; identificar setores e players da parte chinesa, da portuguesa, e da comunidade de Macau. Mas temos de trabalhar com objetivos muito concretos; muitas vezes a grande falha: falamos muito; mas no action plan, follow-up, e delivery, estamos muito mal.
– Ler oportunidades e criar redes…
A.C.S. – Exatamente. As redes são hoje cruciais porque o paradigma da conectividade vai dominar este século; tudo vai funcionar através de redes e distribuição do conhecimento, energia, tecnologia, e financiamento. É vital assegurar isso também aqui.