A comunidade internacional observa com atenção e nervosismo o domínio Talibã no Afeganistão. No terreno, milhares de pessoas estão deslocadas; à crise política junta-se o desemprego, a fome, e a seca que devasta o país… “A guerra acabou”, diz ao PLATAFORMA Mirwais Maiwandwal, antigo editor do Daily Weesa, maior jornal independente do Afeganistão. Contudo, o novo Governo deixa muitas incertezas no ar; e apesar do regresso à paz, “a situação social, económica e política piorou”.
Qual é neste momento a realidade social, económica e social no Afeganistão, particularmente na capital de Cabul?
Mirwais Maiwandwal: No geral, a segurança melhorou bastante desde a queda da República Islâmica – governo anterior. Já não testemunhamos grandes ataques, bombistas suicidas e assassinatos nas grandes cidades. O Afeganistão rural também vive um período de paz e calma. Outrora, a comunidade rural vivia em constante medo de bombardeamentos das forças internacionais, ataques aéreos e noturnos… estavam basicamente encalhados entre os Talibã e o Governo. Em suma, a guerra acabou.
No entanto, devido à incerteza que vivemos, a situação social, económica e política piorou. A participação da sociedade civil, especialmente no caso das mulheres, seja nos Media ou outros setores, baixou drasticamente. Metade da população vive abaixo do limiar da pobreza, e com o colapso de Cabul, as pessoas estão mais desesperadas que nunca. Os funcionários públicos não são pagos há meses, a privada e os negócios fecham devido ao futuro incerto e há novos limites ao financiamento bancário.
Depois do colapso do governo anterior, e uma vez estabelecido o domínio talibã, o país submergiu num vácuo político. A 7 de setembro, os Talibã anunciaram a formação de Governo, mas durante 23 dias não houve qualquer liderança nos setores públicos. A informação é parca e ainda não se conhecem as alterações que vão ser introduzidas no sistema judiciário; o Procurador-Geral e Juiz Presidente do Supremo Tribunal não foram anunciados. Além disso, as embaixadas de vários países fecharam e a comunidade internacional ainda não reconheceu o novo Governo. Esperamos que este tenha boas intenções e se revele a escolha certa para colocar o país no caminho certo, sem estar isolado do resto do mundo.
Sente-se ameaçado? E as pessoas à sua volta?
M.M.:Diretamente não. Os Talibã anunciaram uma amnistia geral para as forças de oposição. Contudo, de vez em quando, ouço relatos de diferentes pontos do país segundo os quais certos indivíduos são perseguidos. Num desses casos, uma mulher e um polícia da província de Ghor foram mortos. Uma criança, que afirma ser filho da senhora assassinada, aparece num vídeo a denunciar o ato, dizendo que a mãe estava grávida e acusa os talibãs do crime hediondo. O porta-voz Talibã negou o envolvimento do grupo e garante que o caso está a ser investigado. A verdade é que Ghor é uma província muito remota – no oeste – e hoje em dia o acesso a informação credível, bem como a verificação de argumentos contraditórios, é muito difícil.
Acredita na promessa Talibã de uma transição pacífica?
M.M.: Pela minha experiência pessoal, no contacto com talibãs armados, na esfera pública e em vários postos de controlo em Cabul, têm sido brandos e comportam-se de forma civilizada. Relativamente às promessas de transição pacífica, terão de a provar essa com ações. No fim do dia, é isso que interessa, não palavras e promessas vazias.
Após a retirada dos Estados Unidos e tomada do poder pelos Talibã, a imprensa chinesa reportou que Pequim respeitará o direito afegão de escolher o seu próprio destino. Que escolhas tem a população e o que desejam?
M.M.:Os afegãos querem inclusão, competência, liderança profissional e boa governação. Queremos todos os setores da sociedade representados no Governo. Os cargos de topo nos ministérios devem ser atribuídos a profissionais, deixando de lado a religião, ideologias ou etnias. E isso só se concretiza quando as pessoas tiverem intervenção política e puderem eleger os seus líderes. De momento, os Talibã não parecem ser a favor de eleições.
Quanto ao futuro envolvimento da China no Afeganistão, queremos que a relação seja vantajosa para ambos. O Afeganistão está em desenvolvimento, e com o corte do apoio estrangeiro, que representava cerca de 75 por cento do Produto Interno Bruto, precisamos de investimento estrangeiro em vários setores. A China não é só a segunda maior economia mundial, é também muito importante na região, e pode desempenhar um papel vital na reconstrução da economia afegã. Foram assinados contratos com o anterior governo para projetos mineiros; infelizmente, por falta de insegurança, conflitos armados e instabilidade no Afeganistão, nunca avançaram. Agora com paz e estabilidade no horizonte, espero que estes megaprojetos comecem. Esperamos também que os interesses nacionais não sejam comprometidos nas relações bilaterais, como aconteceu com os EUA e outras potências ocidentais, nas últimas duas décadas.
Muita gente fugiu depois dos EUA terem retirado os militares da região. Alguma vez pensou deixar o seu país?
M.M.:A retirada tímida dos EUA e da NATO e o rápido e inesperado colapso do governo afegão deixaram as pessoas sem esperança. Temiam a retaliação Talibã e pensaram que os seus sonhos se haviam despedaçado durante a noite. A única esperança para a sobrevivência era deixar a pátria. Acredito firmemente que os EUA criaram esta situação intencionalmente.
Para ser honesto, se o status quo persistir, não me resta outra opção senão deixar a minha pátria amada. Perdi o emprego como jornalista e, num futuro próximo, não vejo possibilidade de trabalhar aqui livremente na minha profissão. Nos últimos dias, vários jornalistas locais foram detidos em Cabul por cobrirem protestos anti-Talibã. A situação dos jornalistas e da imprensa livre é muito preocupante. Se os Talibã formarem um governo inclusivo e continuarem empenhados na liberdade de expressão e dos meios de comunicação social, nunca deixarei o meu país. Mas se não puder exercer a profissão que amei toda a vida, se não puder ter uma vida digna, partirei. Espero não ser forçado a isso.
Para consciencializar as comunidades chinesa e portuguesa para a situação do Afeganistão, quer deixar alguma mensagem aos leitores internacionais? Qual é a ajuda que o povo precisa?
M.M.:Gostaria que os cidadãos de todo o planeta não virassem costas ao Afeganistão. Como seres humanos, devem sentir-se moralmente responsáveis perante os afegãos. Como contribuintes, devem pressionar os seus respetivos governos a abrirem as portas aos afegãos que enfrentam ameaças – e ajudar o país. O Afeganistão vive uma catástrofe humanitária; a comunidade internacional deve agir de forma responsável – e a tempo. Milhares de famílias afegãs estão deslocadas devido aos conflitos armados, enfrentando o desemprego, a escassez de alimentos e as alterações climáticas, com uma grave seca em várias zonas do país. As nações ocidentais, especialmente os EUA, que congelaram bens da nação afegã, devem dar prioridade aos interesses da população pobre e não a interesses imperiais. As nossas vidas estão em jogo; somos 35 milhões num país devastado pela guerra; e apenas poucos milhares tiveram a sorte de chegar ao ocidente.