Em 1970, 42% dos alojamentos familiares em Portugal não dispunham de instalações sanitárias. Em 2011 essa percentagem tinha descido para 1%. Neste mesmo ano, cerca de 59% dos edifícios não tinham entrada acessível a pessoas com mobilidade condicionada e que se deslocam em cadeira de rodas.
Entre 1970 e 2011 a taxa de analfabetismo em Portugal desceu de 25,7% para 5,2%. Mas a taxa de analfabetismo nas mulheres em 2011 era quase o dobro da que se registava na população masculina. Por outro lado, em 2001 cerca de 9% das pessoas com 23 ou mais anos de idade tinham completado o ensino superior, número que aumentou para 15% em 2011, ano em que as mulheres representavam 60% dos diplomados.
Em 2011 cerca de metade da população idosa tinha muita dificuldade ou não conseguia realizar pelo menos uma de seis atividades básicas do dia-a-dia, como andar, subir degraus, tomar banho ou vestir-se sozinho. Dificuldades que afetavam então quase um milhão de pessoas, mais de metade das quais viviam sozinhas ou acompanhadas exclusivamente por outros idosos.
O racismo e a discriminação contra as pessoas afrodescendentes, ciganas e de outras comunidades racializadas são uma realidade antiga, quotidiana e estrutural
Dispomos destes dados porque o Estado os recolhe através dos recenseamentos da população e da habitação, habitualmente conhecidos como Censos. O objetivo, como nos diz o próprio organismo responsável pelo processo, o INE – Instituto Nacional de Estatística, é “obter uma ‘fotografia’ dos indivíduos e das suas condições de habitabilidade” para “saber quantos somos, como somos e como vivemos”.
Esta caracterização é essencial, não só por nos permitir conhecer melhor a estrutura social e económica do país e a sua evolução, mas também porque constitui um instrumento indispensável para a definição de políticas públicas nos mais variados domínios, da habitação à saúde, da educação à proteção social, da desigualdade de género ao envelhecimento da população, para referir apenas alguns exemplos.
Mas esta fotografia não está completa. Dela estão ausentes as pessoas racializadas. Ou melhor, estão presentes, mas racialmente invisíveis. São retratadas como homens ou mulheres, pessoas jovens ou idosas, residentes no norte ou no sul, solteiras ou casadas, portuguesas ou estrangeiras, analfabetas ou doutoradas, católicas ou muçulmanas, empresárias ou empregadas. Mas não como pessoas negras ou ciganas ou de outro grupo étnico-racial.
A imagem que temos está incompleta. Falta obter um retrato mais preciso da diversidade de que é composto Portugal, que não é de uma só cor nem tem uma cultura uniforme.
Para sabermos “quantos somos, como somos e como vivemos”, precisamos de conhecer o modo como as desigualdades resultantes de discriminação étnico-racial afetam as pessoas racializadas nos domínios do emprego, da habitação, da educação, da saúde, da proteção social, da justiça e da segurança, entre outras.
Defendemos que a recolha de dados sobre a composição étnico-racial da população fosse incluída nos Censos 2021, conforme defendido pelo Grupo de Trabalho criado pelo Governo para estudar essa possibilidade, reivindicado pela maioria das organizações antirracistas e recomendado por diversas organizações internacionais.
Contudo, o Instituto Nacional de Estatística (INE) decidiu, após parecer do Conselho Superior de Estatística, não incluir nos Censos 2021 qualquer questão sobre origem/pertença étnico-racial, argumentando que “a recolha desta informação não é passível de ser efetuada com os níveis de qualidade desejados nesta operação” e representa “um risco para a realização da operação censitária como um todo”.
Não havendo a recolha através dos Censos, o INE comprometeu-se com a realização de um inquérito dedicado que permita caracterizar a composição étnico-racial da população e conhecer melhor a discriminação e desigualdade com base na origem ou pertença étnico-racial existentes na sociedade portuguesa.
A elaboração do estudo de viabilidade da realização deste inquérito, a que o INE atribui a designação de “Inquérito às Condições, Origens e Trajetórias da População Residente”, foi aprovada no Orçamento de Estado para 2020 e incluída no Plano de Atividades do Instituto para este ano. Contudo, não foi incluída no plano de atividades qualquer calendarização para a realização desse estudo (ao contrário do que acontece com as restantes atividades do INE que integram o plano) nem foi divulgada publicamente qualquer informação sobre o andamento do processo, pelo que, até à data, não sabemos quando é que o mesmo será concluído.
Mais do que necessário, é urgente que este inquérito seja concretizado de modo célere, empenhado e participado. Ele representa um instrumento valioso para conhecer melhor a desigualdade e a discriminação com base étnico-racial existente. A sua consecução deve contar com a participação das organizações antirracistas e representativas das diversas comunidades racializadas.
O anúncio, incluído pelo Governo na proposta de Orçamento do Estado para 2021 (OE 2021), da criação de um grupo de trabalho para acompanhamento deste inquérito e como “espaço de reflexão” no quadro do Observatório do Racismo e Xenofobia que pretende criar, representa uma oportunidade para garantir a participação e representação das comunidades racializadas e do movimento antirracista neste processo. Uma oportunidade que não pode ser desperdiçada e que deve ser alargada à criação do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, outra medida anunciada no OE 2021.
O racismo e a discriminação contra as pessoas afrodescendentes, ciganas e de outras comunidades racializadas são uma realidade antiga, quotidiana e estrutural. É urgente conhecer melhor os seus sintomas, para melhor os corrigir através de políticas públicas, complementares às que já existem, nomeadamente as que visam o combate à pobreza.
Para tal, é necessário ter acesso a dados fiáveis e abrangentes. Para obter a imagem que falta, para que ninguém fique invisível no nosso retrato coletivo.
*Deputada do Bloco de Esquerda (BE) – Portugal