O Governo anunciou investimentos em infraestruturas sanitárias nas escolas e, onde houver condições, prevê o regresso às aulas presenciais ainda durante este ano letivo, que termina em dezembro. Mas há várias dúvidas e alertas. O último relatório do UNICEF faz um ponto de situação.
Cerca de metade das escolas secundárias de Moçambique funcionam sem latrinas e apenas metade tem acesso ao sistema público de água. Os dados divulgados pelo mais recente relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) sobre o país, divulgado no início do mês, fazem parte de um levantamento que está a ser esboçado pelo Ministério da Educação. Outros estão a ser preparados para os restantes graus de ensino. As informações recolhidas no terreno mostram a dificuldade que o país enfrenta para reiniciar as aulas presenciais, uma vez que muitas escolas não têm condições de higiene básicas para o dia-a-dia normal, quanto mais para aplicar medidas de desinfeção acrescidas para prevenir a propagação do novo coronavírus.
“Foi intensificada a colaboração com o setor do UNICEF dedicado à água, saneamento e higiene (setor designado pelo acrónimo inglês Wash: ‘water, sanitation and hygiene’)”, refere o relatório. O objetivo da agência das Nações Unidas é impulsionar o Governo a “promover instalações com capacidade ‘Wash’ em todas as escolas”, para que se alcance um equilíbrio entre regresso às aulas e segurança sanitária. Numa nota publicada em junho, o UNICEF referia que “quanto mais tempo as escolas estiverem fechadas, maior será a perda de tempo de aprendizagem e maiores serão as hipóteses de as crianças, especialmente as raparigas, não regressarem à sala de aula após a reabertura”. No entanto, o regresso às aulas “deve ser feito na base de uma boa planificação, de modo a assegurar que os alunos, e professores, possam ter toda segurança e assim evitarem o coronavírus nas escolas”, realçou na mesma altura a representante-adjunta, Katarina Johansson.
A pandemia de covid-19 virou do avesso os calendários escolares, nalguns países mais que noutros. Em Moçambique, a pandemia foi declarada quando o ano letivo tinha pouco mais de um mês e as principais restrições (com a declaração de estado de emergência) em vigor desde final de março incluem o fecho de todas as escolas, de todos os graus de ensino. O ensino â distância é apontado como a alternativa, mas num dos países mais pobres do mundo muitos não têm acesso a Internet nem sequer a televisão, sobretudo nos distritos remotos. No final de junho, o Presidente da República, Filipe Nyusi, anunciou a reabertura das escolas, mas a falta de condições de higiene fê-lo recuar poucas semanas depois. Assim, hoje há diferentes planos para retomar o ensino presencial, consoante o grau de ensino.
Desde 18 de agosto, passou a ser permitida a reabertura de aulas em universidades e academias, equiparadas a atividades de baixo risco, lado a lado com cultos religiosos com o máximo de 50 pessoas. As turmas são mais pequenas e cada turma tenta seguir uma série de protocolos de prevenção que incluem o distanciamento social e a lavagem frequente das mãos.
Desde 07 de setembro o estado de calamidade pública substituiu o estado de emergência. Para dia 01 e outubro está previsto o início das atividades classificadas de ‘alto risco’ e aqui inclui-se o início das aulas de 12.º ano de escolaridade. Pelo meio, o reinício da pré-escola, ensino básico e médio vai estar dependente de autoridades sanitárias a nível provincial e de inspeções a cada estabelecimento de ensino, sem datas definidas. As medidas aplicam-se tanto ao ensino público como privado.
Anular o ano letivo?
“O UNICEF forneceu apoio financeiro ao Ministério da Educação para a preparação de programas de rádio e TV à distância”, nota o último relatório da agência da ONU, que realça também o “trabalho intenso feito com o Governo para a definição de procedimentos para a reabertura da escola”. Mas as dúvidas avolumam-se. De tal forma que a organização não-governamental Centro de Integridade Pública (CIP) sugere que o Governo moçambicano avalie a possibilidade de anular o ano letivo e usar o tempo que resta até dezembro para “efetuar as melhorias possíveis para um retorno mais seguro em 2021”.
Moçambique tem cerca de 13.300 escolas primárias e 670 escolas secundárias no sistema de ensino público. O Governo moçambicano anunciou em julho que pretende investir 3,5 mil milhões de meticais (44 milhões de euros) na reorganização das escolas, para a sua reabertura faseada. Mas o CIP pede que o Governo desenhe um plano detalhado para intervenções mais profundas. A estrutura atual do sistema de ensino não garante que apenas a reabilitação e a reposição de infraestruturas de água e saneamento sejam suficientes para evitar uma contaminação massiva, refere.
Em busca de métricas para decidir
O diretor do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças da União Africana (África CDC), John Nkengasong, disse no início do mês que não faz sentido abrir escolas se a prevalência de casos ativos de covid-19 for superior elevada. “Faz sentido abrir escolas onde a prevalência é inferior a 5%”, salientou o diretor do África CDC. Em Moçambique, há diferentes números disponíveis, consoante a análise. O relatório do UNICEF nota que “a doença se expandiu geograficamente e que foi registado um aumento da taxa de positividade nos teste à covid-19, de 5% para 7%” entre julho e agosto.
Entretanto, o Ministério da Saúde está a realizar inquéritos sero-epidemiológicos nas capitais de província. O levantamento realizado na capital, Maputo, revela que a seropositividade é maior em pessoas com 60 anos ou mais (4,48%) e que a faixa dos 35 aos 59 tem a taxa de seropositividade mais baixa, com 3,03%. O inquérito apurou ainda que 70,62% dos inquiridos expostos à covid-19 não teve sintomas.
O Ministério da Saúde declarou em agosto a cidade de Maputo como terceiro ponto do país (depois de Cabo Delgado e Nampula) onde existe transmissão comunitária “dada a alta taxa de positividade, distribuição dispersa de casos e mudança no perfil de infeções”, nota o UNICEF. Moçambique aproxima-se do total acumulado de 4.500 casos de infeção e regista 27 mortes (até 06 de setembro). Resta saber se estes números vão ajudar a tomar novas decisões sobre o desfecho a dar ao presente ano letivo.
Se dependesse de Jorge Ferrão, antigo ministro da Educação de Moçambique e reitor da Universidade Pedagógica de Maputo (instituição estatal), não voltaria a haver aulas. “Com uma contaminação comunitária, depois de Nampula e Cabo Delgado, eu acho que o melhor é cuidarmos, primeiro, desse aspeto, reduzirmos essa propagação comunitária e deixar as aulas para depois”, referiu em entrevista em julho. As direções das escolas podem conseguir controlar a conduta dos alunos dentro do recinto escolar, assim como as medidas de prevenção da pandemia de covid-19, mas já não têm essa supervisão fora, muito menos no itinerário entre a casa e a escola e vice-versa. “Nós não controlamos todo o ecossistema em que está inserido o aluno. Na paragem do autocarro, estão mais pessoas, não há distanciamento social e o transporte é precário”, frisou. O antigo governante defende que a covid-19 revelou de um modo mais incisivo as deficiências da infraestrutura escolar em Moçambique, mostrando a urgência de investimentos.