Em 2019, quase 800 navios chineses agressivos e muitas vezes armados saquearam as águas norte-coreanas e violaram acordos diplomáticos. Uma prática que explica o mistério dos “navios fantasmas” à deriva no Mar do Japão, conta a edição de hoje do Libération
O capitão de um navio pesqueiro sul-coreano concordou em levar uma equipa de reportagem do jornal francês Libération pelas águas perigosas que lhe são proibidas: as da Coreia do Norte. Pouco depois de escurecer, no final do primeiro dia no mar, o flash de um barco apareceu na tela do radar. O capitão acelerou para chegar à área. Para surpresa da tripulação, o ponto na tela não ocultava um, mas quase 24 navios. Todos fluem das águas sul-coreanas para as do vizinho ao norte. Todos ostentam a bandeira chinesa. Nenhum deles tem seus transmissores-recetores ligados, embora a lei sul-coreana o exija.
Os navios da China escondem-se porque estão na maior ilegalidade, conta a reportagem. A China é membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas que impôs por unanimidade sanções à Coreia do Norte em 2017, proibindo a pesca estrangeira nas suas águas. Foi uma resposta da ONU aos testes nucleares de Pyongyang, com o objetivo de punir o regime autoritário de Kim Young-Un ao proibir a venda de direitos de pesca.
Pela primeira vez, graças a pesquisas de satélite da ONG Global Fishing Watch, O Libération relata que pôde identificar cerca de 800 embarcações chinesas que pescavam nas águas da Coreia do Norte em 2019, ou seja, quase um terço da frota pesqueira de longa distância.
Essa autêntica armada de barcos industriais da China, até então invisíveis, abalroa violentamente os pequenos barcos norte-coreanos e leva a uma redução de mais de 70% dos antes abundantes stocks de lula. “Este é o maior caso conhecido de pesca ilegal perpetrada por uma única frota industrial operando nas águas de outro país”, disse ao jornal francês Jaeyoon Park, especialista em análise de dados da Global Fishing Watch.
Esta descoberta levanta o véu sobre um mistério que preocupa a polícia japonesa há vários anos: o dos “navios fantasmas” norte-coreanos. Construídos em madeira dentada, estes barcos navegam no Mar do Japão por meses. Mas contêm apenas uma carga quando chegam à costa: os cadáveres de famintos pescadores norte-coreanos. No ano passado, mais de 165 desses navios terríveis encalharam no Japão, mais do que o dobro do ano anterior. Um fenómeno tal que algumas cidades portuárias, incluindo Chongjin, na costa leste da Coreia do Norte, são agora chamadas de “cidades das viúvas”.
Os barcos de pesca chineses são conhecidos por serem agressivos, geralmente armados e por se confrontarem com concorrentes estrangeiros ou barcos-patrulha das autoridades. Em 2016, as tensões entre Seul e Pequim aumentaram depois de um navio chinês, que pescava ilegalmente em águas sul-coreanas, ter afundado um barco da guarda costeira sul-coreana.
Perante tal violência, os pescadores norte-coreanos não têm como concorrer ou ripostar. Em competição direta com os chineses, os seus navios, que normalmente transportam entre cinco a dez homens, não estão equipados com casas de banho ou camas, apenas pequenos jarros de água potável, redes e apetrechos de pesca, segundo relatos da Investigação da Guarda Costeira Japonesa. Içam bandeiras norte-coreanas esfarrapadas e os seus cascos costumam apresentar números pintados ou inscrições em caracteres coreanos, incluindo “Departamento de Segurança do Estado” e “Exército do Povo Coreano”.
Em março, dois países reclamaram anonimamente num relatório dirigido às Nações Unidas sobre as violações dessas sanções pela China e forneceram provas: imagens satélite de embarcações chinesas a pescar em águas norte-coreanas, bem como depoimentos de tripulações de pesca chinesas que afirmam ter avisado Pequim sobre os seus planos de pescar nas águas da Coreia do Norte.
Este artigo está disponível em: English