Início Opinião Não é a boca grande que come, é a vontade

Não é a boca grande que come, é a vontade

João Melo*

Ninguém duvida da riqueza e variedade da gastronomia portuguesa actual, mas já pensaram como seria na Idade Média? Bem, os pobres contentavam-se com o cristão pão e vinho, os ricos dispunham de fartura pagã, quiçá entediante devido aos temperos se resumirem a gorduras e ervas autóctones. Chegam os Descobrimentos, introduzem-se as especiarias do oriente e pim, ficámos presos na rede do exótico. Outros impérios subjugaram povos para lhes subtrair terras ou matérias primas, nós travámos valentes cruzadas de modo a obter controlo sobre o negócio das drogas do paladar. Viciámo-nos em granadas de sal, bombas de açúcar, pontapés na canela, explosões de pimenta, mísseis de caril, gases mostarda, balas de chocolate, morteiradas de cafeína, enfim, uma trip de cores e sabores ao ritmo de Bollywood.

Na China, comer é uma função fisiológica, igual a ir à casa-de-banho, em Portugal é um ágape sagrado. Só falta ver um restaurante fechado à hora de almoço exibindo o letreiro “encerrado para almoço”. Se ligar a uma empresa ao meio dia, existe a forte possibilidade de ouvir soutôr foi almoçar, quer deixar recado?” Voltando a ligar às 14:05h ninguém atende, a telefonista estará na sua hora de almoço. Às 15:15h o soutôr continua ausente do escritório: “poois… sabe, vieram cá uns clientes estrangeiros, e o soutôr levou-os a almoçar em Sesimbra; quer deixar recado?” A vergonha alheia faz-me desistir de responder à sua cantiga de desafio “quer deixar recado?” com a cantiga de escárnio “diga-lhe que ligou o idiota da reunião do meio-dia e meia”.

O pior é se nessa “reunião de trabalho” também há soutôras, seres naturalmente castradores dos instintos primários; um gajo vai ter de comer bróculos, não se pode estar à vontade para abardinar

Desligo e o meu pensamento voa. Imagino o soutôr servido a presunto e melão, perguntando ao empregado se recomenda a açorda ou o arrozinho de tamboril, mandando vir uma reserva especial de nome rústico tipo “Monte das Moscas”, “Ti Bojarda”, ou “Cu de Mula”, contando piadas rascas num sotaque macarrónico, enquanto mostra no smartphone topo de gama fotos brasileiras malandras, convencido que deixará uma marca indelével de faustosa hospitalidade nos seus convidados. O soutôr exibe o esprit de um embaixador renascentista, no entanto a batalha entre os seus dedos toscos e uma fugidia azeitona revela igualmente o atávico ADN de mãos alimentadas durante séculos a pão e vinho, habituadas a agarrar um cajado. A sua aparente auto-confiança, reconheçamos o mérito, advém de representar o triunfo de uma estirpe esfomeada que agora se pode dar ao luxo de caprichos hedonistas. Logo à noite, depois de um lauto jantar, talvez leve os convidados a um strip club ou a um “barzinho de música ao vivo” onde um pindérico toca covers. Às 16:30h recebo uma chamada do soutôr: “Tou?… Tou?… (brrshh) …eh pá desculpe lá isto, estes gajos… Tou?… Devo estar numa zona sem rede… estes gajos, uns alemães, apareceram-me aqui de repente, já sabe como é (por acaso sei, os alemães não aparecem de repente excepto em Varsóvia); podemos marcar na próxi… (brrshh) …inta-feira? Você passa lá ao fim da manhã e a gente despacha o assunto”.

Quinta-feira, na minha presença e na da secretária, a reunião transmuta-se em um almoço de trabalho e “ó Teresa, cancele-me aí tudo até às 4”. Mensagem subliminar dirigida a mim: “hoje serás tu o Rajá, que se lixe o resto. Vou-te tirar a barriga de misérias, eu sou assim, um mãos largas!” O pior é se nessa “reunião de trabalho” também há soutôras, seres naturalmente castradores dos instintos primários; um gajo vai ter de comer bróculos, não se pode estar à vontade para abardinar, e depois já nem é almoço, ainda se torna mesmo numa reunião, querem ver?…

*Músico e Embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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