Na cidade aquática de Veneza, onde a vida e a morte se fazem sobre as águas dos canais, a Peste Negra medieval está presente em ícones da cultura pop como a célebre máscara de bico do médico da peste ou nos desenhos estilizados de ratos em casacos de veludo. Veneza está agora vazia destes souvenirs de um drama antigo, agora ressuscitado sob um outro nome e um outro vírus. Em Itália, a nova peste, o coronavírus, atingiu proporções de catástrofe humanitária. Leem-se notícias de que a equipas de saúde vão deixar morrer infetados com mais de 80 anos porque não têm como acudir a todos ou sobre como os familiares dos que morreram não podem dar funerais condignos aos entes queridos por causa do pânico (justificado) de contágio. Um dos países mais belos do mundo é agora um lugar de fim do mundo, apocalíptico. A Praça de São Marcos, coração de Veneza, está, por fim, vazia. Consequência da quarentena provocada pela pandemia, com a interdição dos ferry boats as águas dos canais apareceram transparentes, ao ponto de se verem peixes. Se Veneza tem resistido ao tempo, a todas as pragas e ao avanço do mar, devemos a essa joia Património da Humanidade e símbolo da cultura ocidental resistir também. Podemos reter-nos neste excerto do livro “A Morte em Veneza”, sobre um surto de cólera na cidade italiana no início do século XX e retirar da História os devidos ensinamentos: “(…) A corrupção das autoridades, combinada com a insegurança reinante, o estado de sítio em que a cidade mergulhara graças ao alastrar da morte, davam azo à depravação nas camadas mais baixas, instigavam instintos ilícitos e anti sociais (…) e o crime profissional atingia proporções extremas e insuportáveis, como até então só eram conhecidas no Sul do País e no Oriente”. Quando tudo passar, iremos a Veneza. Passaremos de barco para a ilha do Lido, a do festival de cinema e onde ainda são visíveis as icónicas barraquinhas de praia com listras azuis ebrancas. Ali, ao respirar aquele odor intemporal de mar, teremos a certeza que recomeçámos.
Rute Coelho 27.03.2020