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“Uso o feminismo na escrita como um instrumento de denúncia”

Dina Salústio defende que as mulheres continuam a ser menorizadas. A escritora, uma das maiores referências da literatura cabo-verdiana, vem a Macau falar desta e de outras causas que transporta para os livros.

O feminismo é uma dos temas que explora com os personagens e histórias que tem criado. A esse associa outros que façam da sociedade um espaço “mais justo, livre e digno”. Dina Salústio começou a escrever tarde, aos 53 anos, mas cedo se tornou um nome incontornável da literatura lusófona e sobretudo de Cabo Verde, onde nasceu. A vinda a Macau para o festival literário Rota das Letras é só mais uma prova da afirmação da escritora fora do país.

– Defende que os escritores devem ter causas. Quais têm sido as suas?

Dina Salústio – Procuro que a minha escrita contribua, de alguma forma, para reforçar a intervenção dos que procuram uma sociedade justa, livre e digna. Por isso, escrevo sobre as situações que mais me incomodam enquanto cidadã e tornam menor a sociedade e o mundo, de forma visível ou não, como a violência sobre as mulheres, as crianças e os jovens, a desigualdade de género, a violação dos direitos humanos, o tráfico de pessoas. 

 – Considera que dizer “escrita feminina” é redutor, prefere “escrita feita por mulheres”. Qual é a diferença? E, sobretudo, existe realmente um olhar que é comum em consequência do sexo?

D.S. – Há toda uma ideia construída que procura identificar a escrita feminina como uma escrita superficial ou sobre questões menores, entendendo-se questões menores tudo que não seja diretamente do campo de ação e interesse seculares dos homens, da política à economia, aos jogos do poder. Em Cabo Verde, numa sociedade profundamente machista, retrógrada e pobre, houve um silêncio total sobre o que as mulheres escreveram desde o período em que se atribui o nascimento da nossa literatura, meados do século XIX, até à independência, em 1975. Acho que a educação e a formação que nós homens e mulheres recebemos, naturalmente, que forjaram identidades distintas e formas de perceção diferentes. Fomos moldados para sermos assim, pelo que é natural que haja um olhar comum às mulheres sobre a sociedade e que se reflete na escrita, na interpretação do mundo, um olhar marcado normalmente pela compaixão e pelo desejo de paz. Quando se toma a consciencialização dos dramas que afetam o mundo e a mulher em particular, esse olhar torna-se suficientemente aguerrido. 

– De que forma transporta o feminismo para o seu trabalho? 

D.S. – O feminismo, mais do que um sentimento, é uma consciência universal que permite juntar-me a outros grupos que procuram um caminho para um mundo mais justo, não sexista ou preconceituoso e desigual. Uso o feminismo na escrita também como um instrumento de denúncia e para convocar, normalmente através de personagens e situações que evidenciam as realidades e as põe em confronto. A evolução acontece e é visível, quer através da legislação e dos instrumentos da sua aplicabilidade – que satisfazem -, quer pela informação que nos chega, sobretudo através da comunicação social e pela análise social, das mudanças nos comportamentos que ocorrem. A juventude está mais aberta à situação, sobretudo quando as jovens e mulheres conseguiram a sua independência económica. No entanto, as notícias dão conta que falta ainda a assunção plena da mulher dos seus direitos e da sua liberdade, e falta à sociedade perceber que uma sociedade desigual é uma sociedade menor.

– Gostava que me explicasse melhor essa ideia de que “o escritor é um fazedor de autenticidades”. Ao mesmo tempo dizia numa outra entrevista: “o leitor pensa que se a escritora o conseguiu emocionar, não foi com uma invenção, foi com algo real que se passou com ela. Aí é que está o ponto, ele não acredita que a emoção que sentiu é uma mentira, que foi baseada numa invenção”. De que forma é que a ideia que defende antes, e esta, podem andar de nãos dadas?

D.S. – A literatura não é uma fotografia da realidade. Se o fosse não seria essa coisa dinâmica e surpreendente capaz de despertar paixões e revoltas, em meia dúzia de páginas. O escritor constrói autenticidades com elementos que colhe na realidade envolvente, ou percebida de alguma forma, de modo a despertar o sentimento dos leitores, às vezes os mais escondidos. Cria personagens e acentua, dá mais tensão aos factos a ponto de desafiar o imaginário dos leitores e provocar a sua participação. Portanto, o que o autor atribui a um personagem não é uma mentira – e aqui a arte de construir os personagens e os enredos. É a realidade percecionada de forma a convocar o leitor para a intimidade e interpretação sobre determinado personagem/situação. No entanto, penso que na tentativa de compreender o que lê, é o leitor quem no limite, de facto, dá emoção e vida às personagens, atribuindo-lhes a sua vivência e os seus valores e juízos. É desse confronto entre o que lhe é proposto e o que ele tem que surge ou não a emoção. Uma emoção que o leitor atribui ao escritor mas que, na verdade, é principalmente dele. 

– A literatura e os autores de países como Cabo Verde ainda são pouco conhecidos. Sente que por isso têm o trabalho facilitado por ser mais fácil destacarem-se ou pelo contrário?

D.S. – Acho que pelo contrário. Como somos pouco conhecidos, também somos pouco avaliados e quando essa avaliação acontece é porque se ultrapassou, sem dúvida por competência, algumas barreiras. Pensar que o ser-se de um país pequeno pode facilitar uma boa avaliação seria como defender – alguns têm essa opinião – que quando uma escritora se evidencia é porque se trata de uma mulher. A verdade é que a insularidade não facilita a extinção de barreiras.  

– Sente-se uma referência na literatura cabo-verdiana e, indo mais longe, africana ou lusófona?

D.S. – Como a literatura que eu faço é estudada nas escolas e universidades de Cabo Verde, penso que já é uma referência no país, passe a imodéstia. A minha escrita é também estudada no Brasil e Portugal, onde há sobre ela, assim como em Cabo Verde, algumas licenciaturas, mestrados e doutoramentos. Um prémio dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, em 2000, para a literatura infantojuvenil; o prémio Rosalia de Castro, atribuído pelo PEN Galiza de Espanha, para a literatura em Língua Portuguesa, em 2016; e os prémios recebidos no país como o 1º Prémio em literatura infantojuvenil (1994), o Galardão Ordem do Mérito Cultural (2005), atribuído pelo Governo de Cabo Verde, a atribuição da 1ª Classe da Medalha do Vulcão por S. Exa. o Presidente da República de Cabo Verde, em 2010, e a Homenagem prestada pela Universidade de Cabo Verde em 2016, fazem-me pensar que sim, que a minha escrita pode ser considerada uma referência.  

– Porquê o uso de um pseudónimo?

D.S. – Já usei dois pseudónimos em revistas: “Amanda” e “BL”. O primeiro por uma questão de querer sentir a crítica num meio pequeno e generoso. Não deu resultado. Na semana seguinte toda a gente já me chamava Amanda. O segundo, BL, por querer manter o anonimato. Imediatamente, associaram-me a outro escritor, com muitas interrogações. Num caso ou noutro, o anonimato durou pouco. Assino como Dina Salústio, diminutivo do meu nome Bernardina Salústio, que é um nome muito grande. Acho que Dina representa-me melhor e porque toda a gente me conhece desde criança por esse “nominho”.

– Chega muito pouco da literatura do seu país e do seu trabalho ao resto do mundo. É porque ainda há realmente poucos que se dediquem à escrita ou porque continua a ser um país vítima de um certo ostracismo derivado da dimensão?

D.S. – Aqui há uns anos entre o escritor e o leitor havia apenas o livro e o editor. No presente há uma série de outros agentes. Inclusivamente há o mundo que ficou muito maior graças, também, à revolução nos meios de comunicação. Penso que o desconhecimento não está relacionado com a dimensão do país, mas depende da estratégia que se define para a difusão da literatura como elemento necessário no conjunto da cultura, da sociedade ou da economia. Falta-nos a distribuição e a promoção no país arquipelágico e na cena lusófona, e ainda a tradução para outras línguas que dão acesso a outros leitores e nos possam colocar nos palcos do livro e da leitura.

– Qual a expetativa em relação a Macau e ao festival? Conhece Macau, a China e a região?

D.S. – Na linha da resposta anterior, sinto que o festival vai ser um grande palco, um encontro de ideias, projetos e gentes num lugar que eu conheço apenas parte da sua história, mas que fantasio com elementos que vou recebendo de vários lados. Não conheço a região e apenas o que sei da história é o que alguns amigos e a televisão vão passando.

– A língua, neste caso, a portuguesa, foi responsável pela criação de uma comunidade que está nos quatro cantos do mundo. Sente que esses territórios estão realmente ligados? Que a cultura nos chega e nos chega mais facilmente porque falamos a mesma língua? 

D.S. – Acho que a língua nos aproxima, sobretudo quando penso em centenas de outras comunidades que não me despertam a mesma vontade de participar, de conhecer, de saber e seguir os seus dias, de me comover com as suas notícias. Há uma identidade lusófona que se juntou a cada uma das nossas identidades nacionais e a modificou e a universalizou, no âmbito da lusofonia. Claro que a pertença das caraterísticas imateriais lusófonas depende da exposição individual a elas, das defesas construídas e da identidade matriz de cada um, mas a verdade é que, como por magia, a língua portuguesa nos aproxima e traz-nos um passado que só pode ter futuro. Os festivais de literatura são instrumentos modernos, autênticos facilitadores da comunicação, do conhecimento e de parceria entre os autores, editores, tradutores e outros agentes na construção de pontes entre nós. 

– A relação entre os países lusófonos africanos e a presença da China é cada vez mais forte económica e politicamente. Acha que isso se reflete no plano cultural?

D.S. – Gosto de um olhar positivo e sendo assim, penso que a cultura é beneficiada pelo desenvolvimento económico e por uma visão moderna da política. Mas também tem de ser encarada como um fator de desenvolvimento económico e social, tendo em vista, por exemplo, a música, os aspetos tradicionais culturais, o teatro e a gastronomia. Nas nossas relações com a China, o aspeto cultural tem sido beneficiado, pelo menos em termos de equipamentos culturais. Mas, salvo casos pontuais, não vejo muita relação, embora se diga que temos uma comunidade chinesa muito visível no comércio onde ocupam um lugar destacado e aos poucos fica evidente a penetração, pelo menos a nível de hábitos alimentares e de ornamentação.

– Está a trabalhar em novos projetos?

D.S. – Finalizei um romance que já se encontra com o editor, e um livro de contos que vai dentro de dias para a gráfica. 

Catarina Brites Soares  09.03.2018

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