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“Estamos a tentar ultrapassar a fase da cooperação por amizade”

Abraão Vicente é desde o ano passado o ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde. É também escritor, artista plástico e fotógrafo, e vai ser um dos convidados do festival literário de Macau, Rota das Letras, no próximo mês. Trará uma agenda dupla: apresentar a sua obra e chegar a acordos concretos para maiores contactos culturais entre esta região do mundo e o arquipélago africano.

– Vai participar enquanto convidado do Rota dos letras, num ano em que o  festival literário de Macau inicia também uma parceria com um novo festival que está a surgir em Cabo Verde, o Morabeza. O que é que Cabo Verde espera que resulte deste contacto entre festivais?

Abraão Vicente – O aprofundar dos laços entre Cabo Verde e Macau. A literatura pode servir aqui de pretexto para uma colaboração mais ampla em todas as outras áreas, da literatura às artes plásticas, ao teatro, à música – que é o forte de Cabo Verde. Este festival pode ser definitivamente um bom pretexto para se aprofundar [o relacionamento] e fazer com que os vários acordos que existem entre Cabo Verde, Macau e China se concretizem de facto nessa colaboração cultural que já é bastante forte.

– Tem havido uma aproximação apoiada pela existência do Fórum que liga a China aos países de língua portuguesa em Macau e que tem motivado um maior investimento económico da China e também de Macau em Cabo Verde. Diz que há também uma colaboração cultural forte. Em que é que esta se reflete?

A.V. – Entre Cabo Verde e Macau tem havido uma cooperação essencialmente económica. Vamos ter agora um grande investimento [pelo grupo Macau Legend do empresário David Chow]. A ideia é alargar isso e ter projetos mais concretos também do ponto de vista cultural. A China tem uma presença bastante forte em Cabo Verde, em tudo aquilo que é a infraestruturação cultural. Os nossos auditórios foram feitos e oferecidos pela cooperação chinesa. Temos um grande fluxo de artistas que participam sempre nos festivais ligados à lusofonia, mas também ligados à cooperação direta Cabo Verde-China, e neste momento creio que estamos numa outra fase que é o intercâmbio de artistas, de personalidades e de experiências no campo cultural. Como Cabo Verde é um país bastante recente, do ponto de vista da partilha, do ensino e da programação cultural, tem ainda muito a aprender com Macau. O nosso festival literário nasceu a princípio com a ideia da tricontinentalidade – Europa, África e América – e, assim que me falaram da ideia de introduzir Macau no circuito, achei perfeito. Macau acaba por ser o espaço lusófono por excelência que nos pode fazer a ligação com a parte asiática. Deixamos de ser um festival tricontinental para ter afinal os quatro continentes. A nível de partilha temos tido um histórico muito interessante. Não temos tido muitas experiências literárias, mas antes participações em termos de representação do país noutras áreas. O nosso objectivo como ministério é que os artistas e as personalidades sejam convidadas pela sua qualidade no campo em que atuam. Depois de Cesária Évora, o nosso grande ícone musical, e da Lura, não temos tido grandes artistas que cheguem a palcos de Macau, China, Japão ou Estados Unidos por mérito próprio. Estamos a tentar ultrapassar a fase da cooperação somente por amizade e passar para uma cooperação de reconhecimento. 

– O financiamento de equipamentos culturais através da cooperação chinesa tem sido uma experiência positiva?

A.V. – Os equipamentos têm sido construídos com doações. Temos o Grande Auditório, o Auditório Jorge Barbosa, e o Auditório da Assembleia Nacional. Não implicaram dívidas. Em termos de cooperação, creio que é possível aprofundar. Tanto Macau, como região lusófona, tanto a China, como país, têm muito que ensinar a Cabo Verde. Querendo ou não, Cabo Verde é um país muito recente. Em todas as áreas, da arte cénica à arte plástica contemporânea, na cerâmica – que é uma área que me interessa bastante -, do design à arquitetura, do software ao desenvolvimento de aplicações, o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas vê todo um campo de cooperação em que espero que o festival literário de Macau seja um pretexto para aprofundar [a cooperação] e entrarmos nessas outras áreas. 

– Falou do objetivo de internacionalização dos melhores autores de Cabo Verde, do seu reconhecimento. Em que passo está nesta altura a política do livro do seu ministério?

A.V. –  Houve uma mudança de partido no Governo [do PAICV para  o Movimento para a Democracia]. O outro partido esteve 15 anos no poder e acabámos por encontrar o sector ligado à literatura e ao livro praticamente desmantelado. A própria Biblioteca Nacional, dedicada à promoção de autores nacionais e internacionalização de novos autores, acabou nos últimos anos por ser desmantelada. O que estamos a fazer neste momento é usar o festival [Morabeza] como pretexto para reativarmos essa parte. Passa por reeditar os nossos autores clássicos, reeditar os nativistas – os autores da década de 50 do século XX – e descobrir novos autores. Prova disso, neste momento estamos a coproduzir um filme baseado num romance [“Os Dois Irmãos”] de um autor nacional, o Germano de Almeida. Vai ser realizado por Francisco Manso, realizador português sobejamente conhecido, em Cabo Verde, com 100 por cento de atores cabo-verdianos, 100 por cento rodado em paisagens cabo-verdianas. O nosso objectivo passa por cooperar no cinema, artes cénicas, tendo a literatura como pano de fundo. Contar uma boa história e internacionalizar os autores passa, para um país como Cabo Verde, por uma sinergia de sectores. Também na música vamos ter autores cabo-verdianos a fazer a banda sonora. Pensamos que através de uma grande obra, bem produzida, podemos colocar Cabo Verde em cena, e o nosso plano é colocar este filme em todos os festivais. A nossa política é também estar presente em todos os festivais literários, promovendo os nossos grandes autores. Temos vários poetas: o Arménio Vieira, que é Prémio Camões de 2009, temos o Filinto Elísio, o José Luís Tavares, o Germano de Almeida. Como arquipélago, não podemos ombrear com um país tão grande como o Brasil, ou mesmo com Portugal ou Angola, mas pela qualidade das nossas histórias podemos marcar uma presença que não seja só simbólica. 

– Numa anterior entrevista sua afirmava que a internacionalização dos autores cabo-verdianos está ainda muito condicionada por ideias geopolíticas ligadas à lusofonia. Ainda o entende assim?

A.V. – Como ministro vejo as coisas em duas perspectivas. A lusofonia, por si, já é um mercado bastante grande, apesar de não ser estruturado. Ou seja, Brasil, Portugal, Angola ou Moçambique não pensam a lusofonia no sentido de mercado – ainda somos um espaço de afectos, em que nos ligamos pela história, e muitas vezes convidamos os autores da lusofonia, não porque sejam grandes escritores, mas porque o espaço acaba por consagrar muito mais a afectividade do que a qualidade. O mercado tem de se reger por outras regras. O que tentamos é que a internacionalização se baseie primeiro na qualidade em português, e a partir da qualidade em português fazer com que os nossos autores também sejam traduzidos. Neste momento, o único autor mais conhecido é o Germano de Almeida, com obra em francês, inglês e italiano. Temos também o José Luís Tavares. Neste momento, temos dois autores. Queremos promover a tradução dos nossos clássicos com obra consolidada, nomeadamente, os autores da aqui chamada ‘geração Claridade’. Não creio que seja um mercado fácil, mas através dos circuitos dos festivais literários provavelmente poderemos nos próximos anos ter mais autores com qualidade traduzidos.

– Outros projetos grandes que tem em mãos dizem respeito à conservação do património, com as candidaturas a património universal da morna e do Tarrafal. Vai aproveitar a visita a Macau para conhecer melhor o processo de inscrição do centro histórico local na UNESCO?

A.V. –  Estamos no processo de criar o segundo plano de gestão [da Cidade Velha], já que o primeiro caducou em 2015. Estamos a preparar o dossiê do campo de concentração do Tarrafal, que recebeu angolanos, guineenses, portugueses durante o período colonial, e estamos a preparar a candidatura da morna. Provavelmente, vamos ter mais duas ou três candidaturas de sítios naturais de Cabo Verde a património da humanidade. Quanto a Macau, já pedi à Embaixadora cabo-verdiana na China para preparar uma agenda paralela à dos festival, exatamente para ter noção dos processos que possam ter a ver com Cabo Verde. Obviamente, interessa-nos conhecer a experiência macaense e trazê-la para Cabo Verde. A minha perspectiva é muito pragmática – não podemos assinar protocolos sobre uma abstração. O que vou fazer em Macau é convidar as instituições que possam interessar-se por Cabo Verde para virem ver aquilo que nos interessa e termos um ou dois pontos de colaboração específica. Obviamente, o património interessa-nos por ser aquilo que de mais frágil, mas também mais belo, temos.  Provavelmente, esse será um dos pontos de cooperação a ter em conta na minha visita. 

– Além de visitar Macau na qualidade de ministro, vem também como autor. Tem criado prosa e, mais ultimamente, poesia. O que vai apresentar no festival literário?

A.V. – Vou levar dois livros: o meu primeiro romance, que é “O Trampolim”; e o meu último livro, que tem uma mistura de poesia e prosa [“Amar Sem Medo”]. Quando me fazem o convite, fico sempre dividido entre essas duas facetas – ministro ou escritor. Mas, como escritor, vou falar do processo de escrita, da síntese que ao longo dos anos aconteceu na minha escrita, e do facto de ultimamente ter escrito muito mais poesia pelo percurso que tenho tido em Cabo Verde, ligado à política. Mas a minha escrita acaba por ser uma síntese daquilo que tem sido o próprio percurso da literatura cabo-verdiana – numa primeira fase, bastante contador de histórias, com livros de contos, e depois, como muitos cabo-verdianos, refletindo um tempo em que estive ausente, de estudo. Mas é sempre essa relação umbilical que temos com Cabo Verde enquanto ilhéus. O último livro que vou levar, “O Amar Sem Medo”, tem a ver com cartas de amor e poemas – cartas a Cabo Verde, mas também a figuras femininas bastante evidentes. Uma terceira parte são reflexões sobre o mundo.

Maria Caetano

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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